De Guardião a Demônio: A Representação da Entidade Exu na Umbanda Espiritualista

Exu na Umbanda: De Guardião a Demônio

Informações do documento

Autor

Skarllet Andressa Otto Leite

instructor Prof. (Doutorado) Waldemir Rosa
Escola

Instituto Latino-Americano de Arte, Cultura e História (ILAACH) da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA)

Curso Antropologia – Diversidade Cultural Latino-Americana
Tipo de documento Trabalho de Conclusão de Curso
Idioma Portuguese
Formato | PDF
Tamanho 1.41 MB

Resumo

I.A Representação Ambígua de Exu na Umbanda Espiritualista

Este trabalho de conclusão de curso analisa a construção da representação da entidade Exu na Umbanda Espiritualista, focando nas diferentes interpretações e significados atribuídos a ele por praticantes da religião. Através da análise histórico-social e da análise de discurso, o estudo investiga as ambiguidades inerentes à figura de Exu, desmistificando a dicotomia simplista entre o Bem e o Mal. A pesquisa utiliza elementos simbólicos como palavras, imagens (tridente, cruz, cemitério) e símbolos presentes em rituais e textos umbandistas para compreender a complexidade da representação de Exu. A teoria dos espelhos representativos, desenvolvida neste trabalho, explica como as interpretações subjetivas dos membros da religião criam múltiplas representações da entidade, que não se resumem a uma simples classificação binária. Zélio Fernandino de Moraes é citado como o fundador da Umbanda em 1908. O estudo considera autores relevantes como Manuela Carneiro da Cunha (etnicidade) e Pierre Bourdieu (se aplicável) para o embasamento teórico.

1. Introdução O Objetivo da Pesquisa sobre Exu na Umbanda Espiritualista

O trabalho se propõe a analisar a construção da representação da entidade Exu dentro do universo da Umbanda Espiritualista. O foco principal é compreender as diversas interpretações e significados atribuídos a Exu tanto pela religião em si quanto por seus praticantes. A pesquisa busca desvendar as ambiguidades que cercam a figura de Exu, reconhecendo o caráter subjetivo das visões e interpretações sobre os símbolos, imagens e palavras a ele relacionados. Este estudo argumenta que essas múltiplas representações de Exu não se limitam a uma simples divisão entre 'Exu do Bem' e 'Exu do Mal', mas se apresentam de forma bem mais complexa e interconectada. A metodologia empregada envolve uma análise histórico-social da construção do discurso em torno de Exu, utilizando-se de elementos simbólicos como palavras, imagens e outros sinais que compõem a representação dessa entidade. Em função da complexidade e diversidade de interpretações, o trabalho desenvolve a 'teoria dos espelhos representativos' como ferramenta para explicar as ambiguidades na representação de Exu no espaço religioso, sua base teórica e para seus membros e frequentadores. A obra busca uma compreensão abrangente, que vai além de uma classificação maniqueísta do bem e do mal.

2. Representações de Exu na Sociedade e nas Religiões Afro Brasileiras

A pesquisa destaca o contraste entre a representação de Exu nas religiões afro-brasileiras e a percepção predominante na sociedade brasileira, onde Exu é frequentemente associado ao Diabo da tradição judaico-cristã. Essa associação reforça os aspectos negativos da figura de Exu, levando à ressignificação de seus elementos simbólicos em algumas correntes religiosas, como as neopentecostais. Um exemplo disso é a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), que caracteriza Exu como uma entidade maligna a ser combatida. O trabalho, portanto, se propõe a analisar as diferentes interpretações e significados atribuídos a Exu na Umbanda Espiritualista, buscando entender como essa imagem se constrói e se transforma ao longo do tempo e das diferentes experiências individuais. As ambiguidades na representação da entidade são exploradas por meio de uma análise de discurso, observando os elementos simbólicos e suas diferentes interpretações. A teoria dos espelhos representativos surge como um modelo explicativo para essa complexidade, demonstrando como as relações individuais com Exu e com a religião moldam a percepção dessa entidade, ultrapassando a dualidade simplista do bem e do mal.

3. Aspectos da Umbanda e a Fundamentação de Exu

O estudo contextualiza Exu dentro da estrutura religiosa da Umbanda, uma religião brasileira que sintetiza elementos do africanismo, cristianismo, indianismo e kardecismo. A etimologia da palavra 'Umbanda', com suas raízes em 'Umbundo' e 'Quimbundo' (medicina), e sua ligação com o sânscrito 'Aumbanda' ('lado de Deus'), é apresentada para ilustrar a riqueza sincrética da religião. Os fundamentos da Umbanda são descritos, incluindo o monoteísmo, a crença nos Orixás, anjos, Jesus Cristo, espíritos, reencarnação, mediunidade, holismo, lei de ação e reação, e livre arbítrio. A pesquisa destaca a complexidade da entidade Exu, que, dependendo do contexto, pode ser visto como 'amigo' e 'conselheiro', ou associado à ideia de mal, sendo descrito como 'demônio', 'interesseiro', 'pactuador' ou 'encosto'. O trabalho enfatiza a necessidade de uma abordagem que considere a diversidade de interpretações, indo além de uma simplificação binária do bem e do mal. A autora Manuela Carneiro da Cunha (2009) é referenciada em relação a sua análise sobre etnicidade e a construção de identidades culturais.

4. Exu O Guardião Complexo do Universo da Umbanda e suas Manifestações

Esta seção descreve a representação visual e as diferentes formas de manifestação de Exu na Umbanda. Exu é frequentemente representado com roupas pretas e/ou vermelhas, fumando charutos e bebendo bebidas alcoólicas, ora de forma jovial e coloquial, ora mais reservada e séria. Os diversos nomes que Exu recebe (Seu Tatá Caveira, Seu Tranca Ruas, Seu Sete Encruzilhadas, etc.) são mencionados, destacando a diversidade de suas personificações. Ademir Barbosa Junior (2011) é citado como fonte sobre as características e funções de Exu. A capacidade de Exu de mudar de aparência, assumindo aspectos animalescos ou grotescos, é apresentada, bem como sua atuação em “giras de esquerda” ou trabalhos mágicos para resolver problemas amorosos, familiares e financeiros. A seção destaca as diferentes manifestações de Exu dependendo do local (estradas, cemitérios, encruzilhadas), com variações em sua personalidade e forma de atuação, sendo classificados em Exus de cemitérios, encruzilhadas e estradas. A ambiguidade de Exu como entidade que atua na lei cármica, tanto do bem quanto do mal, é reafirmada, com o peso moral sendo atribuído àqueles que se relacionam com a entidade, e não à entidade em si.

II.Discursos e Símbolos Uma Análise Discursiva das Representações de Exu

Esta seção aprofunda a análise discursiva dos elementos simbólicos associados a Exu na Umbanda. A pesquisa examina como imagens e símbolos (bebidas, cigarros, roupas, tridente, etc.) geram diferentes interpretações e construções da identidade de Exu, dependendo do contexto e da percepção individual. A análise explora a influência do sincretismo religioso e da religiofagia na construção de significados ambíguos, mostrando como um mesmo símbolo pode carregar diferentes conotações. A pesquisa também destaca a relação de Exu com outros Orixás e a hierarquia dentro da Umbanda, demonstrando que as representações não são uniformes, mesmo dentro de um mesmo terreiro. O estudo relaciona a imagem de Exu com a representação do Diabo na tradição judaico-cristã, contrastando-a com a percepção na Umbanda, onde Exu é frequentemente associado à lei de ação e reação e ao carma.

1. A Complexidade da Construção da Representação de Exu

A análise da representatividade de Exu na Umbanda exige um exame detalhado dos discursos que o cercam. A noção de discurso, neste contexto, engloba não apenas textos escritos, mas também palavras, frases e imagens com valor simbólico e interpretativo. Edward Said (op. cit.) é citado, afirmando que as representações são discursos que enunciam uma ideologia com o objetivo de sintetizar normas e pensamentos sociais, exercendo controle sobre a realidade apresentada. A construção das representações de Exu é complexa e perpassa os níveis macro e micro das relações sociais, onde as fronteiras entre interdiscurso e intradiscurso são fluidas e não universais. Na religião, essa maleabilidade é evidente na construção do discurso, bem como nos elementos e símbolos utilizados, demonstrando que o mesmo símbolo, imagem ou palavra pode adquirir diferentes significados dependendo do contexto. O sincretismo e a religiofagia nas religiões afro-brasileiras exemplificam essa flexibilidade de sentidos. A imagem da cruz, por exemplo, pode ter múltiplas interpretações, dependendo do contexto. O estudo aprofunda a análise dos elementos simbólicos, focando como estes constroem discursos e representações de Exu, independentemente de serem associados a um Exu 'do Bem' ou 'do Mal'.

2. Análise Discursiva dos Elementos e Símbolos Associados a Exu

A construção das representações de Exu abrange diferentes níveis, desde o macro até o micro das relações sociais. Os símbolos associados a Exu, como o tridente, espadas, caveiras, velas, pentagramas, cruzes, túmulos, pedras, flechas, montanhas e ventos, entre outros, possuem diferentes significados dependendo do contexto. A maioria dos símbolos, exceto o tridente, está relacionada ao campo de atuação de Exu ou ao Orixá com o qual a entidade está relacionada. O exemplo dos Exus relacionados a Ogum é citado, com referências à espada, ferro, estrada ou caminho em seus pontos riscados ou nomes, refletindo a associação de Ogum à figura do guerreiro. A análise discute a fragmentação dos elementos simbólicos em diferentes Exus, levando a choques discursivos e distintas representações. Mesmo dentro de um mesmo terreiro, em uma gira de esquerda, haverá Exus mais extrovertidos e outros mais reservados, uns que realizam trabalhos e despachos, e outros que utilizam o diálogo para auxiliar seus consulentes. A associação do tridente ao diabo é analisada, contrastando-a com sua representação na Umbanda e em outras religiões antigas, como a mitologia grega (tridente de Poseidon).

3. Símbolos Relacionados à Morte e a Ausência de uma Representação Única do Mal

A análise prossegue com a discussão sobre os símbolos relacionados à morte associados a Exu (lodo, cemitério, caveira), que evocam temor e refletem a tendência da sociedade ocidental de evitar o tema da morte. O conceito de biopolítica é utilizado para ilustrar a valorização da 'vida viva' e as estratégias para afastar a morte do centro das relações sociais. A imagem da morte humanizada (capa com capuz e foice) também é analisada em sua associação com Exu. Na Umbanda, Exus associados à morte (caveira, caixão, lama, túmulo) muitas vezes são guardiões e protetores, também relacionados à saúde e cura. A pesquisa esclarece que a Umbanda não representa o mal por meio de uma única figura simbólica, como no cristianismo. O mal, na Umbanda, é associado às ações dos próprios indivíduos, sejam eles vivos ou mortos. A analogia de Exu como uma 'faca de dois gumes' ilustra sua capacidade de produzir tanto o bem quanto o mal, dependendo do contexto e da intenção. A função de Exu como regente da lei de ação e reação, ou lei do carma, é destacada, atribuindo a responsabilidade pelos males da humanidade à própria humanidade, sendo Exu o aplicador das consequências.

III.Exu e Terreiro Relações Hierarquias e Concepções

A seção discute a influência do terreiro e suas características particulares na construção da imagem de Exu. A diversidade da Umbanda, resultante do seu sincretismo (africanismo, cristianismo, indianismo, kardecismo), gera variações nas práticas e representações de Exu entre diferentes terreiros. O papel do dirigente espiritual (mãe-de-santo ou pai-de-santo) na definição das normas e práticas rituais é enfatizado. A incorporação mediúnica e o conceito de possessão são analisados, considerando diferentes níveis de influência espiritual (obsessão, fascinação, subjugação, possessão). O trabalho ressalta a importância da experiência individual dos médiuns na construção de suas representações particulares sobre Exu, considerando aspectos de luz e trevas, bem e mal, e a evolução espiritual.

1. A Diversidade da Umbanda e suas Implicações na Representação de Exu

A seção inicia explorando a diversidade presente na Umbanda, argumentando que cada casa, terreiro ou centro possui suas próprias características e fundamentações, influenciando as sessões, trabalhos realizados e imagens associadas às entidades. Essa diversidade não se limita às diferentes ramificações da Umbanda ao longo da história, mas também à sua natureza sincrética, que funde elementos de cosmologias afro-brasileiras e indígenas, do cristianismo e do espiritismo kardecista. Mesmo dentro de uma mesma ramificação, podem existir divergências no vestuário, comportamento e maneira de trabalhar com entidades específicas. A pluralidade está ligada ao Orixá ou entidade que rege o espaço de culto, estabelecendo normas e fundamentações sobre vestimentas, comportamentos e tipos de trabalho mediúnico. A responsabilidade pela organização e fiscalização das sessões, visando garantir a ordem prescrita pela entidade regente, cabe ao dirigente espiritual (mãe-de-santo ou pai-de-santo).

2. Teoria dos Espelhos Representativos A Relação entre Exu e seus Médiuns

A seção detalha a manifestação de Exu na Umbanda Espiritualista através da incorporação mediúnica, utilizada para consultas, passes energéticos, curas e outros auxílios espirituais. Os ensinamentos da Umbanda Espiritualista indicam que os médiuns concedem permissão para que as entidades usem seus corpos, ocorrendo um acoplamento de auras, incorporação de chacras e conexão mental, ou seja, uma divisão da consciência entre médium e entidade. Este processo, segundo os médiuns, requer permissão total, embora existam exceções em indivíduos com mediunidade inconsciente. Alexandro Frigerio (1999) é citado, enfatizando o papel da magia e dos rituais na construção de arquétipos que legitimam os discursos e práticas internas na Umbanda, com a magia atuando na resolução de problemas cotidianos e na construção de elementos rituais para a troca de conhecimento religioso. As experiências fora do espaço religioso contribuem para a formação individual e sua visão de mundo, influenciando as noções morais e comportamentais.

3. A Visão Individual da Entidade Exu Luz Trevas e a Questão do Bem e do Mal

A seção descreve a construção da representação individual de Exu, analisando entrevistas onde elementos como luz e trevas, bondade e maldade, foram mencionados. A ideia de evolução espiritual, em alguns casos, é compreendida como crescimento espiritual voltado para a luz, associando Exu ao bem e à redenção de atitudes passadas. Essa visão, porém, ainda mantém uma separação entre bem e mal, simbolizada por Céu e Inferno. Para outros entrevistados, 'guardião' se refere à função de segurança e proteção de espaços religiosos e seus frequentadores. A relação entre Exu e o mal é analisada, com todos os entrevistados negando essa associação direta, justificando que o mal está ligado às ações individuais e não à entidade em si. Exu seria, portanto, o aplicador da lei de ação e reação, ou lei do carma, retirando o peso moral de suas ações. O inferno, nesse contexto, reside na consciência individual e se relaciona com as atitudes de cada um. A hierarquia entre entidades na Umbanda Espiritualista é abordada, descartando a ideia de evolução espiritual linear e sugerindo a existência de diferentes planos e densidades espirituais.

IV.Considerações Finais A Complexidade da Representação de Exu

A conclusão reforça a complexidade e a multiplicidade de representações de Exu na Umbanda Espiritualista, rejeitando qualquer tentativa de simplificação ou universalização. A pesquisa destaca a natureza subjetiva das noções de bem e mal na percepção individual dos praticantes da religião. O trabalho aponta para a influência de uma visão de mundo ocidental, cristã e hegemônica, que promove uma dicotomização simplista que não reflete a riqueza e a complexidade da religião afro-brasileira. O estudo conclui enfatizando a necessidade de considerar o contexto histórico e cultural na compreensão da representação de Exu, reconhecendo o impacto do racismo, da intolerância e do preconceito contra os cultos afro-brasileiros na construção de imagens negativas.

1. A Complexidade da Figura de Exu e a Multiplicidade de Representações

A conclusão enfatiza a complexidade da figura de Exu, impossibilitando uma definição simples e universal. As interpretações sobre Exu são tão diversas que sua representação resiste a qualquer tentativa de universalização, especialmente se essa representação for ambígua. As ambiguidades atribuídas a Exu pelos praticantes da Umbanda se refletem nas múltiplas possibilidades de teorização a seu respeito, assemelhando-se a um “espelho reflexivo”. A Umbanda apresenta diferentes ramificações, sendo uma delas a Umbanda Espiritualista, e cada casa, terreiro ou centro possui regras e fundamentos que as diferenciam, mesmo dentro da mesma ramificação. A busca por compreender Exu na Umbanda Espiritualista ilustra a diversificação na construção das representações religiosas. A representação de Exu, assim como outras entidades de esquerda, possui ambiguidade, principalmente quando se consideram todos os elementos presentes em suas representações. A construção de um Exu “do bem” e um Exu “do mal” em esferas separadas não responde à questão de quem seria essa entidade na Umbanda, pois noções como bem/mal, certo/errado, bom/mau são subjetivas e dependem do ponto de vista de quem observa e sofre as consequências das ações.

2. A Subjetividade do Bem e do Mal e a Influência de Visões Hegemônicas

As diversas visões sobre Exu – sua função, elementos simbólicos e aparência – constroem uma rede complexa de sentidos e interpretações. A construção da representação de Exu não se limita ao espaço religioso do terreiro, ultrapassando-o para encontrar uma lógica de mundo diferente e hegemônica, que reduz a complexidade da representação religiosa a uma dicotomia inexistente na realidade dessa religião. Essas representações possuem uma construção histórica, desde a vinda da imagem da África, banalizada por racismo, intolerância, preconceito e perseguição aos cultos afro-brasileiros. No caso de Exu, a construção de sua representação negativa se originou em uma ideologia ocidental, branca, cristã e hegemônica que divide o mundo em duas esferas opostas: tudo o que não é visto como bom, certo e celestial é caracterizado como demoníaco. Essa distorção gerou um contradiscurso representativo onde Exu busca escapar da simplificação da definição de bem e mal, existindo no espaço da ambivalência.