
Memorial para Professor Titular
Informações do documento
Autor | Artur Cesar Iaia |
Escola | Universidade Federal de Santa Catarina |
Curso | História |
Tipo de documento | Memorial de Atividades Acadêmicas |
Idioma | Portuguese |
Formato | |
Tamanho | 863.15 KB |
Resumo
I.A Formação Acadêmica e Inícios na Docência Da Escola Pública à UFRGS
Este texto detalha a trajetória acadêmica do autor, marcada por dificuldades econômicas iniciais que o levaram a estudar em escolas públicas, como o Colégio Estadual Manoel Ribas (Maneco) em Santa Maria e a Escola Técnica da UFRGS em Porto Alegre. A experiência na escola pública durante o regime militar, com disciplinas como Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira, é descrita, destacando a influência de professores críticos ao regime, apesar das imposições curriculares. A influência de seu padrinho, um autodidata apaixonado por História, é fundamental na sua escolha profissional inicial, que o leva a ingressar no curso de Odontologia e posteriormente, após reconhecer sua verdadeira vocação pela História, a transferir-se para o curso de História na UFRGS. Suas primeiras experiências docentes ocorrem em escolas particulares e públicas, em áreas rurais (entre Porto Alegre e Santo Antônio da Patrulha) e na periferia de Porto Alegre, expondo-o a realidades sociais contrastantes.
1. Dificuldades Econômicas e a Escola Pública
O relato inicia com a perda do pai na infância, seguida de dificuldades econômicas que forçaram a saída do Colégio Santa Maria, dos Irmãos Maristas, e a transição para a escola pública. O autor completa o ginasial e o segundo grau (atual ensino fundamental e médio) em instituições públicas, primeiro no Colégio Estadual Manoel Ribas (Maneco) em Santa Maria e depois na Escola Técnica da UFRGS em Porto Alegre. Essa etapa é descrita como desafiadora, com a obrigatoriedade de cursar disciplinas de cunho ideológico do regime militar, como Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira. Apesar do contexto repressivo, o autor destaca a presença de professores, principalmente nas áreas de humanas e, em especial, de história, com posições críticas ao regime, contrapondo-se aos manuais didáticos oficiais de Antônio Borges Ermida, produzidos sob a égide do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. A experiência na escola pública moldou profundamente a sua formação, expondo-o a diferentes métodos de ensino e perspectivas políticas.
2. Influência Familiar e o Interesse pela História
A influência de seus padrinhos, que não tinham filhos, foi crucial na vida do autor. Ele passou longos períodos com eles, viajando desde a infância. Seu padrinho, um autodidata sem formação superior, mas com profundo apreço pela leitura e pela história, teve um papel fundamental na formação inicial de seu interesse pela disciplina. As conversas com o padrinho, desde a infância, despertaram nele uma paixão pela história, contrapondo a visão limitada dos manuais escolares e aulas focadas na memorização. Essa convivência precoce com a história, ainda que não acadêmica, foi essencial para moldar sua visão e curiosidade sobre o tema, mostrando-lhe que a história ia além da memorização mecânica e das limitações dos materiais didáticos da época, como a coleção FTD.
3. A Escolha Inicial por Odontologia e a Posterior Transição para História na UFRGS
Inicialmente, o autor ingressa no curso de Odontologia na UFRGS, porém logo percebe a falta de identificação com a área. Mesmo cursando Odontologia, ele mantém contato com o círculo de estudantes de História, facilitado pela proximidade física no Ciclo Básico da UFRGS, onde cursava disciplinas como a polêmica “Estudo dos Problemas Brasileiros”, apelidada pelos estudantes de “Estudo das Maravilhas Brasileiras”. Essa experiência reforçou seu interesse pela História, levando-o a solicitar uma transferência interna para o curso de História na UFRGS. A convivência prévia com colegas de outros cursos de humanas facilitou a integração às atividades estudantis. Apesar de ter que conciliar estudos com trabalho, o autor se envolveu em discussões e grupos de leitura, buscando suprir as lacunas da formação acadêmica.
4. Primeiras Experiências Docentes Ensino Particular e Público em Contextos Contrastes
Ainda estudante, o autor inicia suas atividades docentes no ensino particular e posteriormente na rede pública, impulsionado pela falta de professores. A oportunidade de lecionar o leva a trabalhar em escolas com realidades sociais muito distintas: uma escola rural entre Porto Alegre e Santo Antônio da Patrulha, com alunos filhos de pequenos proprietários rurais, descendentes de açorianos, e uma escola na periferia de Porto Alegre, com alunos em situação de carência extrema, inclusive alimentar. Essas experiências contrastantes forneceram ao autor um aprendizado prático e desafiador, confrontando-o com as limitações da sua formação acadêmica em situações imprevistas, como improvisar salas de aula, consertar goteiras e garantir segurança em aulas noturnas. A vivência prática dessas situações tão distintas reforça sua formação acadêmica, mas também lhe mostra as limitações da teoria em face da realidade.
II.Mestrado e Doutorado PUCRS e USP Foco em História Ibero Americana e História das Religiões
Após a graduação em História na UFRGS, o autor cursa mestrado em História Ibero-Americana na PUCRS, conciliando estudos com a docência em escolas públicas e privadas. A dissertação de mestrado leva um tempo considerável devido à necessidade de trabalho concomitante. Posteriormente, ele ingressa no doutorado em História Social na USP, com bolsa da CAPES (PICD), o que lhe permite dedicar-se integralmente à pesquisa. Sua tese de doutorado, intitulada “O Cajado da Ordem”, marca uma inflexão importante em sua carreira, com foco na História das Religiões, analisando a atuação política do arcebispo Dom João Becker em Porto Alegre e seu papel no contexto do Estado Novo. A pesquisa analisa a atuação política de Dom João Becker, arcebispo de Porto Alegre e antes bispo de Florianópolis, e seu papel no apoio à centralização política varguista.
III.A Docência Universitária e Pesquisa Análise do Discurso Católico sobre a Umbanda
O autor destaca sua longa trajetória na docência universitária, na PUCRS (até 1993) e posteriormente na UFSC, ministrando disciplinas como História do Brasil, História do Pensamento Político e Econômico, História Econômica do Brasil, e Cultura Brasileira. Ele enfatiza a importância da pesquisa para sua docência, principalmente em disciplinas como “Tópicos Especiais” e “Teoria da História II”, onde integra suas pesquisas aos conteúdos programáticos. Seus projetos de pesquisa, iniciados no mestrado, aprofundam-se no doutorado e se concentram na análise do discurso católico sobre a Umbanda, buscando compreender como a Igreja Católica se posicionou em relação a esta religião, recorrendo a discursos médicos e psiquiátricos, especialmente influenciados por Jean-Martin Charcot e Raimundo Nina Rodrigues, para desqualificar a Umbanda e suas práticas. O estudo também aborda a utilização da literatura de cunho mágico-ocultista europeia por intelectuais umbandistas, numa busca de legitimação e diferenciação em relação ao Candomblé.
1. Docência na PUCRS e a Integração entre Pesquisa e Ensino
A experiência docente na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), de 1980 a 1993, é descrita como uma fase rica em aprendizado e experiência. O autor ministrou disciplinas como História do Brasil, História do Pensamento Político e Econômico, História Econômica do Brasil e Cultura Brasileira, acumulando uma carga horária significativa, além de suas atividades em colégios. A PUCRS é apontada como um local de desenvolvimento de sua capacidade de pesquisa, onde ocupou cargos administrativos como Chefia do Departamento de História e Coordenação do Programa de Pós-Graduação em História. Essa experiência administrativa lhe permitiu um contato mais aprofundado com a vida acadêmica, integrando-o plenamente ao ambiente universitário. O autor salienta a importância dessa etapa para seu desenvolvimento profissional, tanto na pesquisa quanto na docência, e o carinho que nutre pela instituição. A integração da pesquisa e da docência é um ponto central dessa fase, preparando o caminho para projetos futuros mais aprofundados.
2. Análise do Discurso Católico sobre a Umbanda Metodologia e Fontes
Um projeto de pesquisa desenvolvido entre 2000 e 2002 focou na análise do discurso católico sobre a Umbanda, buscando desvendar como a Igreja Católica representou e tentou desqualificar a Umbanda, não apenas como religião, mas como uma expressão da identidade brasileira. A pesquisa utilizou fontes da Igreja Católica, principalmente do Rio de Janeiro e São Paulo, e do Centro-Sul do Brasil, incluindo jornais, revistas e boletins, refletindo a vitalidade da hierarquia eclesiástica na região. O autor considera também um modelo eclesiológico piramidal, com uma ênfase na voz daqueles que, nessa perspectiva, falam em nome de Deus. Paralelamente, o projeto privilegiou a documentação referente à Umbanda: livros de intelectuais umbandistas, obras doutrinárias, jornais, revistas, boletins e estatutos de centros. A utilização de entrevistas com dirigentes e adeptos da Umbanda buscou complementar a análise, oferecendo um contraponto ao discurso de desqualificação e valorizando as experiências pessoais e a memória coletiva, buscando entender o “universal nas diferenças”. O trabalho com fontes diversas revela a complexidade do estudo e a busca por uma análise abrangente.
3. A Utilização de Discursos Médicos e o Projeto de Desqualificação da Umbanda
A pesquisa identificou no discurso católico a utilização de discursos socialmente qualificados para desqualificar a Umbanda. Além do discurso médico e técnico, foi observado o uso de um discurso do final do século XIX, com um viés branqueador e desqualificador, que rejeitava a ideia de sincretismo presente nas representações da Umbanda. O termo sincretismo não é utilizado como categoria analítica, mas apenas para descrever uma realidade histórica. A pesquisa investigou como a Igreja recorria a discursos médicos e psiquiátricos, buscando legitimar a condenação da Umbanda, associando-a a ideias de atraso, marginalidade e incultura. Esse discurso era frequentemente associado a uma visão de progresso e desenvolvimento, contrastando com a representação da Umbanda como um sintoma de atraso cultural e social. A estratégia da Igreja Católica demonstrava, portanto, uma tentativa de controlar e definir os limites do campo religioso brasileiro no contexto do desenvolvimento.
IV.Espiritismo Discurso Médico e a Medicalização da Loucura Um Estudo de Caso Brasileiro
Este projeto investiga a relação entre o espiritismo brasileiro da primeira metade do século XX, a medicina psiquiátrica da época e suas políticas de intervenção social. A pesquisa aprofunda a análise da utilização do discurso médico-psiquiátrico, especialmente influenciado por Charcot, pela Igreja Católica para condenar as práticas mediúnicas. O trabalho explora a coabitação e o embate entre discursos espíritas e médico-psiquiátricos, analisando as estratégias de médicos e espíritas para definir seus territórios de conhecimento e intervenção social. O autor analisa como o discurso médico-psiquiátrico, com suas raízes no positivismo francês, foi apropriado e ressignificado pela Igreja Católica para legitimar sua condenação ao Espiritismo e à Umbanda, associando práticas mediúnicas a estados de loucura e negritude. O estudo considera também as perspectivas regionais sobre a relação entre Espiritismo, discurso jurídico e médico.
V.Magia Umbanda e a Busca por Legitimação O Papel da Literatura Mágico Ocultista Europeia
A pesquisa examina a presença do magismo na literatura umbandista, confrontando abordagens tradicionais da sociologia das religiões que opõem magia e religião. O autor analisa como intelectuais umbandistas utilizaram a literatura mágico-ocultista europeia (autores como Éliphas Lévi, Papus e outros) para construir uma identidade mais letrada e moderna para a Umbanda, buscando se distanciar da imagem de prática mágica associada ao Candomblé e às religiões afro-brasileiras. O foco está nas estratégias discursivas e identitárias dos intelectuais umbandistas, no uso do livro e da escrita como ferramenta de legitimação e projeção social, buscando a superação de um discurso que os associava ao atraso e à incultura. O autor considera a obra desses intelectuais como uma estratégia de poder, visando impor uma definição hegemônica para a Umbanda.
1. Magia na Umbanda Ultrapassando a Oposição Tradicional Religião Magia
Este projeto investiga a presença da magia nas exegeses religiosas da literatura produzida por intelectuais umbandistas brasileiros. A pesquisa se distancia das abordagens tradicionais da sociologia das religiões que baseiam sua análise na oposição entre religião e magia. A importância da magia na Umbanda é analisada a partir da sua presença constitutiva no campo religioso brasileiro. Paula Montero é citada, argumentando que as fronteiras religiosas no Brasil resultaram de um processo histórico de diferenciação entre magia e religião, com o Estado e saberes afins reconhecendo e protegendo práticas consideradas religiosas (como o cristianismo), enquanto tipificava as práticas mágicas como criminosas. O autor destaca a complexa relação entre a magia na Umbanda e a interlocução com o Estado e discursos médicos, jurídicos e católicos, buscando enquadrar as práticas mágicas umbandistas numa leitura próxima ao ideal cristão, apesar da existência de consensos historicamente construídos que enquadram práticas consideradas atentatórias aos “interesses sociais” (Montero).
2. A Literatura Umbandista e a Busca pelo Escriturístico Uma Estratégia de Legitimação
O projeto centra-se nas fontes escritas da Umbanda, analisando o papel do livro e da tradição escriturística nessa religião. A pesquisa considera a Umbanda em suas conexões com o caráter livresco do espiritismo francês do século XIX, porém sem considerá-la essencialmente letrada. O autor discorda de autores como Renato Ortiz, Paula Montero e Maria Isaura Pereira de Queiroz, que consideram a Umbanda essencialmente livresca, e argumenta que o livro foi uma estratégia dos intelectuais umbandistas para aproximar-se de códigos simbólicos socialmente dominantes e projetar uma identidade valorizadora desses códigos na nova religião. Esses intelectuais são considerados produtores e disseminadores de conhecimento, mas o foco está na inserção deles em associações e grupos, buscando imprimir sua direção à religião, sem, no entanto, esgotar a compreensão da Umbanda. A busca pelo escriturístico é vista como um esforço para situar a Umbanda na modernidade, opondo-a a discursos que a viam como sintoma de atraso.
3. Magia Europeia e Ocultismo na Umbanda Erudição e Construção Identitária
A pesquisa aborda a recorrência à literatura mágico-ocultista europeia nas obras doutrinárias umbandistas, buscando compreender a relação entre religião e magia. O autor rejeita explicações evolucionistas, como as de Tylor e Frazer, que propõem uma linearidade histórica entre magia, religião e ciência. A pesquisa se distancia também de oposições entre práticas religiosas e mágicas, como as propostas por Durkheim, e utiliza uma perspectiva relacional, considerando o significado atribuído pelos atores sociais ao termo magia (Keith Thomas). O estudo evidencia a utilização de autores europeus de ocultismo e magia (Éliphas Lévi, Papus, Saint Yves, Francis Barrett, Madame Blavatski) pelos intelectuais umbandistas como forma de “erudição”, marcando uma separação da oralidade do Candomblé e uma superação de práticas mágicas ligadas à ancestralidade afro-ameríndia, numa tentativa de aproximação com a modernidade e o progresso. Essa não é uma substituição da magia afro-ameríndia pela europeia, mas uma estratégia identitária.