
Crônicas de Gouveia: identidade madeirense
Informações do documento
Autor | Lisandra Carolina Ornelas Faria |
instructor/editor | Ana Cristina Gil, Professora Doutora |
Escola | Universidade dos Açores |
Curso | Línguas e Literaturas Modernas |
Tipo de documento | Dissertação de Mestrado |
Local | Ponta Delgada |
Idioma | Portuguese |
Formato | |
Tamanho | 9.07 MB |
Resumo
I.A Crónica Jornalística de Horácio Bento de Gouveia e a Afirmação da Identidade Madeirense
Esta dissertação investiga a presença da identidade madeirense nas crónicas jornalísticas de Horácio Bento de Gouveia, figura proeminente do jornalismo madeirense do século XX. O estudo analisa como as crónicas refletem a cultura madeirense, incluindo folclore, gastronomia, e a experiência da emigração madeirense. A pesquisa utiliza as compilações dos escritos de Gouveia, publicados pela filha, Maria de Fátima Gouveia Soares, para analisar como o autor representa os usos e costumes da ilha da Madeira, seu "centro geográfico-sentimental", abordando temas como a vida rural, o cosmopolitismo e a crítica social. São investigadas as características da crónica jornalística madeirense de Gouveia, incluindo sua relação com o regionalismo madeirense e o provincialismo português, explorando a sua função pedagógica e a sua contribuição para a preservação da memória coletiva da ilha.
1. A Crónica Jornalística como Género Definição e Contexto
A dissertação inicia definindo a crónica jornalística, classificando a maioria dos textos de Horácio Bento de Gouveia como pertencentes a este género. A crónica é apresentada como um texto de opinião, situado numa fronteira tênue entre literatura e jornalismo, permitindo grande subjetividade ao escritor. Este aspeto é crucial para compreender a abordagem de Gouveia, que expressa frequentemente sua visão regionalista e suas opiniões, exaltando tradições e características da ilha da Madeira. João David Pinto-Correia é citado para descrever a antologia dos escritos de Gouveia, destacando a presença de episódios dinâmicos, sequências dramáticas e emoções como devoção, fervor, alegria, comunhão e saudade. A contribuição de Maria de Fátima Gouveia Soares, filha do autor, na compilação e publicação destas crónicas, inicialmente dispersas por periódicos madeirenses e continentais, também é mencionada, esclarecendo-se a autoria dos textos para futuros estudos bibliográficos. A justificativa para a existência de géneros jornalísticos, segundo José Jorge Letria e José Goulão, é apresentada: nem todas as notícias têm o mesmo grau de importância ou são suficientemente ricas para esgotar os temas que abordam; a falta de tempo ou espaço impede um tratamento adequado de temas que merecem destaque. Fermín Galindo Arranz, citando Lorenzo Gomis, explica que os géneros jornalísticos cumprem duas funções: informar sobre os acontecimentos e formar opiniões sobre os mesmos, evidenciando a natureza híbrida da crónica jornalística.
2. A Crónica Bentiana e a Efemeridade do Jornalismo
O texto discute a visão de alguns autores sobre a efemeridade das crónicas jornalísticas, contrastando-a com a importância duradoura das crónicas de Horácio Bento de Gouveia para o estudo da identidade madeirense. Apesar de muitos considerarem o jornalismo um género efêmero, as crónicas de Gouveia, ao valorizarem o património, os usos e costumes madeirenses, constituem um recurso valioso mesmo nos dias atuais. A publicação em livro contribui para combater a fugacidade inerente ao jornalismo, um ponto de vista partilhado por Adriano Rodrigues, Eduardo Dioníso e Helena Neves. A discussão sobre a natureza da crónica jornalística continua com a observação de que, apesar de estar vinculada à atualidade e incidir sobre temas polêmicos, ela possui uma certa liberdade temática e de estilo, aproximando-se da literatura e diferenciando-se dos géneros puramente informativos, como a notícia. A discussão envolve autores como José Marques de Melo, que descreve a crónica como um género cultivado por escritores para relatar acontecimentos cotidianos numa perspectiva pessoal; Joaquim Letria, que enfatiza a liberdade estilística do cronista; e Luís Carmelo, que a define como uma síntese regular e permanente do trabalho jornalístico e literário. A contra-argumentação à efemeridade é feita: as crónicas de Gouveia, mesmo as que incentivavam a valorização do património madeirense ao serem publicadas, mantêm-se relevantes para estudos atuais, um ponto de vista reforçado pela opinião de Manuel Henrique Almeida sobre a longevidade das crónicas em livro.
3. Contexto Histórico da Imprensa e da Crónica em Portugal
O desenvolvimento da imprensa em Portugal é contextualizado, destacando o atraso em relação a outros países europeus devido à censura. A criação da Real Mesa Censória em 1768 e a Guerra Civil de 1828-1834 são mencionadas como momentos que impediram a liberdade de imprensa. Apesar da censura, o gosto pelos jornais crescia, ultrapassando o paradigma do jornalismo puramente informativo e abrindo espaço para a imprensa de opinião. O surgimento das crónicas-folhetins em publicações como O Cronista e O Português, com a participação de escritores como Almeida Garrett e Ramalho Ortigão, é descrito como um marco na evolução do género. A distinção entre crónica e folhetim é esclarecida, com a crónica focando-se na realidade social, política e cultural, e o folhetim assumindo-se como uma modalidade mais literária, muitas vezes utilizada pelos autores para promoverem as suas obras ou prepararem esboços para livros. Este contexto é crucial para compreender o surgimento da crónica nos jornais, sendo um espaço para o cronista relatar factos do quotidiano com uma perspectiva subjetiva, influenciando a sua narrativa e o seu estilo.
4. A Identidade Madeirense na Obra de Horácio Bento de Gouveia
A investigação foca-se nas crónicas de Horácio Bento de Gouveia que abordam a identidade madeirense, reconhecendo a importância cultural da sua obra literária, mas privilegiando a análise jornalística. A relevância da carreira jornalística de Gouveia é sintetizada por Thierry Proença dos Santos. O estudo aponta para a importância das crónicas bentianas na afirmação e divulgação do património material, social e cultural da Madeira, destacando as temáticas abordadas: exaltação da cultura madeirense, evocação de vultos literários portugueses, filologia, crítica de costumes, relato de viagens e descrição de usos e costumes típicos da região. A perspetiva de Natália Gonçalves sobre a abrangência temática das crónicas bentianas é mencionada. A obra de Gouveia é analisada em relação ao neorrealismo, particularmente em Ilhéus/Canga, que retrata a exploração e a miséria dos camponeses, e sua abordagem regionalista, descrita por Octaviano Correia. A análise considera também o provincialismo português do final do século XIX e as várias abordagens estéticas, desde o estilo mais descritivo da natureza, até à crítica social e à exaltação da identidade madeirense. A preservação e divulgação da identidade dos pequenos territórios é enfatizada, numa linha de pensamento partilhada por Onésimo Teotónio de Almeida e Thierry Proença dos Santos.
II.Características da Crónica Bentiana Regionalismo e Provincialismo Português
As crónicas de Horácio Bento de Gouveia são analisadas em termos de estilo e temática. O estudo identifica a exaltação da cultura madeirense, a evocação de vultos literários portugueses e a crítica social como temas recorrentes. O seu regionalismo madeirense é contextualizado no provincialismo português do final do século XIX, com influências do neorrealismo. A linguagem utilizada, marcada por regionalismos e descrições vívidas, contribui para a construção de uma narrativa única e autêntica. A obra de Gouveia revela uma profunda ligação à sua terra natal, sobretudo a região de São Vicente e Ponta Delgada, contrastando os ambientes rurais com os mais cosmopolitas do Funchal. São mencionadas influências literárias como Aquilino Ribeiro e autores como Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz e outros.
1. Temas e Estilos na Crónica de Horácio Bento de Gouveia
A análise das crónicas de Horácio Bento de Gouveia revela uma variedade de temas e estilos. A exaltação dos nomes e obras da cena cultural madeirense é um foco principal, juntamente com a evocação de vultos literários portugueses e a exploração da filologia. A crítica dos costumes e a exposição de assuntos da atualidade da época também estão presentes, assim como o relato das viagens de Gouveia e a descrição dos usos e costumes madeirenses. Natália Gonçalves é citada como tendo já identificado estes focos temáticos. O autor utiliza uma linguagem rica em regionalismos, demonstrando um interesse particular pelos aspetos populares e regionais, dando primazia à genuinidade do camponês. Irene Lucília de Andrade destaca a linguagem erudita de Gouveia, repleta de regionalismos, mas também sua exigência pessoal pelo vernáculo e pela riqueza lexical da língua portuguesa. O estilo de Gouveia apresenta, sobretudo nas primeiras décadas da sua atividade jornalística, um pendor descritivo, com a natureza a desempenhar um papel central. Apesar da liberdade estilística inerente à crónica, o cronista demonstra uma preocupação em contextualizar temporalmente suas crónicas, vinculando-as ao momento em que foram escritas e publicadas, evidenciado pelos textos sobre Natal, vindimas e o Arraial do Senhor Bom Jesus de Ponta Delgada.
2. Regionalismo e Provincialismo na Obra Bentiana
O regionalismo presente na obra de Horácio Bento de Gouveia é analisado em sua amplitude, reconhecendo que, apesar de a Madeira e seus habitantes serem o palco principal, os temas podem ser transpostos para outros contextos territoriais. Octaviano Correia é citado para esta visão: para alguns críticos, Horácio Bento é um escritor regionalista, e sua obra foca a ruralidade, a vida madeirense, conflitos, dificuldades, sofrimentos, submissões e revoltas. No entanto, Correia salienta a atemporalidade das personagens de Gouveia, afirmando que elas poderiam ter nascido, vivido e morrido em qualquer lugar. O provincialismo português do final do século XIX, com seu foco na exaltação da nacionalidade e interesse pela aldeia e província, também é considerado como uma influência na estética bentiana, especialmente após o Ultimato Inglês de 1890 e as comemorações dos 300 anos do falecimento de Vasco da Gama e Luís de Camões, como observado por Evelina Verdelho. Ernesto Rodrigues destaca a componente de ensaio histórico na escrita jornalística de Gouveia, situando-a na diversidade social do século XIX. A análise aponta para a influência de Aquilino Ribeiro, considerado uma das grandes influências de Gouveia. O regionalismo de Bento de Gouveia, ainda que com a Madeira como palco principal, não se limita à ilha, com personagens sendo frequentemente transportadas para países como o Reino Unido, Áustria e Dinamarca.
III.A Preservação da Memória Coletiva Património Material Social e Cultural da Madeira
As crónicas de Gouveia são apresentadas como uma importante contribuição para a preservação da memória coletiva madeirense. O estudo destaca a forma como o cronista aborda o património material (ex: a arquitectura tradicional), o social (ex: a vida das bordadeiras, referenciando obras como Lágrimas Correndo Mundo), e o cultural (ex: festas, música, gastronomia) da região, enfatizando a importância da sua escrita para a afirmação da identidade madeirense, comparando-a com a discussão em torno da açorianidade. Obras como Ilhéus/Canga, que retrata a vida dos colonos, e Torna-Viagem, que aborda o tema da emigração, são exemplos da sua preocupação com a realidade madeirense. A preservação da autenticidade da cultura madeirense diante da globalização é um ponto central da análise, enfatizando a necessidade de valorizar a singularidade dos pequenos territórios.
1. A Crónica como Testemunho da Memória Coletiva Madeirense
Este segmento analisa o papel das crónicas jornalísticas de Horácio Bento de Gouveia na preservação da memória coletiva da Madeira. O texto argumenta que, apesar da natureza efêmera muitas vezes associada ao jornalismo, as crónicas de Gouveia, ao focarem aspetos da identidade madeirense, transcendem essa efemeridade e se tornam um importante recurso para estudos atuais. A compilação destas crónicas, inicialmente dispersas em diversos periódicos madeirenses e continentais, e posteriormente reunidas em livros pela sua filha, Maria de Fátima Gouveia Soares, facilita essa preservação da memória. A imortalização destes textos em livros é apresentada como uma forma de combater a fugacidade associada ao jornalismo. Obras como Saudades da Terra, de Gaspar Frutuoso, Elucidário Madeirense, do Pe. Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Meneses, e Freguesias da Madeira, do Tenente-coronel Alberto Artur Sarmento, são mencionadas como exemplos de trabalhos que contribuem para a afirmação da identidade madeirense, demonstrando que o interesse pela documentação da cultura e história madeirense já existia antes de Gouveia. A crónica de Gouveia “Emigração de Outrora: madeirenses em Hawai” é usada como exemplo do forte sentimento de pertença à ilha, mesmo entre a diáspora madeirense.
2. As Manifestações da Identidade Madeirense nas Crónicas
Esta parte aprofunda a análise das características da identidade madeirense presentes nas crónicas de Horácio Bento de Gouveia. A obra de Vieira Natividade, Madeira: a epopeia rural, é referenciada, onde o autor enumera diversos momentos e rituais típicos da ilha, mostrando diferentes facetas da “madeirense”: desde as Festas de S. Silvestre até ao turismo, passando pela influência inglesa, pelo folclore e pelos vinhos. O texto enfatiza que, mesmo sem consenso sobre o que define a identidade madeirense, há um modo singular de ser e agir na região. A mobilidade do madeirense, mesmo longe da sua terra natal, é destacada: a reprodução simbólica do “viver” madeirense em outros contextos, exemplificado pela mesa natalícia de um emigrante na África do Sul ou pela construção de uma igreja de Nossa Senhora do Monte (padroeira da ilha) por emigrantes no Havai, reforça a persistência da cultura madeirense. A necessidade de conservação, afirmação e divulgação da identidade madeirense, especialmente em pequenos territórios, é enfatizada, citando-se a preocupação de Onésimo Teotónio de Almeida e Thierry Proença dos Santos com a homogeneização cultural do mundo contemporâneo e a urgência em preservar as identidades locais face à globalização.
3. Aspectos Etnográficos Gastronómicos e Musicais da Madeira nas Crónicas
Esta secção examina a representação etnográfica da Madeira nas crónicas de Gouveia, destacando a descrição de eventos festivos, como arraiais e festas, e outros aspetos da cultura material, social e cultural. São analisados os detalhes etnográficos das festas, incluindo a descrição de trajes, música (guitarradas, modinhas triviais, instrumentos como ferrinhos, gaitas e machetes), e gastronomia (contrastando a alimentação em dias festivos com a dos dias comuns, referindo-se à espetada), demonstrando o conhecimento profundo de Gouveia sobre a sua terra. O estudo destaca a importância dos arraiais como um espaço de encontro e expressão cultural. A narrativa sobre o Arraial do Senhor Bom Jesus de Ponta Delgada descreve a chegada de romeiros de toda a ilha, suas músicas e costumes. A importância da preservação do folclore madeirense é enfatizada, citando a falta de compilação completa do cancioneiro popular. Um exemplo é a crónica sobre o trabalho de Carlos Santos, “Um livro de Carlos Santos: o traje regional da Madeira”, onde a discussão da semelhança entre as saias listadas da Madeira e as da ilha de Creta demonstra a riqueza e a complexidade da cultura madeirense e a necessidade de estudos mais aprofundados.
IV.Horácio Bento de Gouveia Trajetória e Obras
A dissertação contextualiza a obra de Horácio Bento de Gouveia dentro da sua trajetória pessoal e profissional. Nascido em Ponta Delgada, São Vicente, Madeira, sua formação e experiência no jornalismo madeirense, incluindo colaborações em jornais como O Desporto, O Radical, Correio da Madeira, e Diário da Madeira, são destacadas. A sua atividade docente e a sua produção literária, com romances como Ilhéus/Canga, Lágrimas Correndo Mundo, e Torna-Viagem, são apresentadas como complementares à sua obra jornalística. A dissertação de doutoramento de Gregory F. Rocha Jr., A Novelist of the Madeiran Experience: The Life and Works of Horacio Bento de Gouveia, é mencionada como uma contribuição relevante para o estudo do autor. A morte de Gouveia em 1983 e o seu legado para a cultura madeirense são considerados.