Aspectos da investigação dos objectos móveis no atual panorama historiográfico luso-brasileiro: reflexões e breves estudos de caso

Anais: Casas Senhoriais

Informações do documento

Autor

Gonçalo De Vasconcelos E Sousa

Escola

Universidade Católica Portuguesa (UCP)

Curso História, provavelmente com foco em História da Arte ou Design de Interiores
Local Rio De Janeiro
Tipo de documento Artigos em Anais de Colóquio
Idioma Portuguese
Formato | PDF
Tamanho 40.61 MB

Resumo

I.A Pesquisa em Artes Decorativas Luso Brasileiras Lacunas e Desafios

Este estudo destaca a necessidade de maior pesquisa em Artes Decorativas nos séculos XVIII e XIX, tanto em Portugal como no Brasil. Há carência de investigação em áreas como prataria doméstica, mobiliário, e ourivesaria, especialmente em relação à prata e ouro. Muitas teses permanecem inacessíveis, dificultando o avanço da pesquisa. A desvalorização dos livros em relação a artigos com peer-review e o alto custo de publicação com imagens de alta qualidade agravam o problema. Há também um desequilíbrio entre pesquisadores teóricos e aqueles focados na análise física dos objetos, com ambos apresentando lacunas em suas abordagens.

1. Lacunas na Pesquisa de Artes Decorativas Luso Brasileiras

A pesquisa identifica uma significativa falta de estudos aprofundados em Artes Decorativas no contexto luso-brasileiro, particularmente nos séculos XVIII e XIX. Embora existam investigações relevantes em áreas como mobiliário e ourivesaria de prata, muitas delas são datadas e necessitam de revisão à luz da historiografia atual. Essa carência afeta diretamente estudos mais amplos, como a análise de ambientes decorativos. A falta de acesso a teses e dissertações, muitas delas ainda restritas a prateleiras universitárias ou indisponíveis online, representa um obstáculo considerável à disseminação do conhecimento e ao surgimento de novas pesquisas, sendo esta situação mais pronunciada em Portugal do que no Brasil. A dificuldade em publicar livros com a qualidade visual necessária para o estudo de Artes Decorativas, devido aos altos custos de impressão e edição de imagens detalhadas, contribui ainda mais para este cenário de deficiência de informação. A ausência de estudos que integrem abordagens teóricas e análises físicas detalhadas dos objetos também é apontada como um desafio a ser superado.

2. Desequilíbrio na Investigação Teoria versus Análise Física

Um dos problemas cruciais apontados é o desequilíbrio entre especialistas que se dedicam a estudos teóricos e aqueles que realizam análises físicas dos objetos, mas sem o devido aprofundamento documental. Pesquisadores teóricos, por vezes, demonstram um desconhecimento técnico da execução dos objetos. Por outro lado, muitos especialistas em análise física deixam de lado o contexto histórico da produção, uso e fruição, o que limita a compreensão completa da peça e seu significado. Essa falta de integração entre as duas abordagens compromete a pesquisa e a compreensão global do tema. A solução passa pela promoção de uma pesquisa mais completa e integrada, que abranja tanto a teoria como a prática, utilizando diferentes fontes para melhor compreender as Artes Decorativas em Portugal e no Brasil. Esta carência de integração representa um entrave significativo no desenvolvimento de estudos mais aprofundados e abrangentes sobre as Artes Decorativas no contexto luso-brasileiro.

3. A Necessidade de um Plano Sistemático para a Pesquisa em Artes Decorativas

O texto defende a implementação de um plano sistemático e progressivo para suprir as lacunas de conhecimento em Artes Decorativas, principalmente no contexto da relação entre Portugal e o Brasil, especialmente nos séculos XVIII e XIX. A criação de núcleos de pesquisa, como o proposto na Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, que inclua Portugal Continental, Açores e Brasil, é apresentada como uma solução para incentivar estudos mais amplos e colaborativos. O texto cita alguns exemplos de teses e trabalhos já realizados em diferentes áreas das Artes Decorativas, como a cerâmica, ourivesaria, mobiliário e talha, mas ressalta a necessidade de trabalhos mais sistemáticos que permitam avanços substanciais no conhecimento dessas áreas. A comparação entre a situação em Portugal e no Brasil mostra que, apesar da existência de centros de investigação no Brasil, a fragmentação e o isolamento dos investigadores impedem a formação de escolas de pesquisa sólidas e duradouras. É fundamental estimular a cooperação entre investigadores dos dois países para promover avanços significativos na compreensão das Artes Decorativas luso-brasileiras.

II. Prataria Doméstica em Portugal Estudos de Caso

O estudo apresenta análises de prataria doméstica portuguesa, com foco em inventários e testamentos. A análise da herança Leite Pereira em Porto (1874) ilustra a riqueza e diversidade de objetos de prata, incluindo talheres, salvas, castiçais e peças para servir bebidas (cafeteira, bule, leiteira, açucareiro). A tipologia da prataria revela práticas sociais das elites, e a pesquisa destaca a necessidade de maior investigação sobre o modus vivendi dessas elites, observando a evolução da ornamentação e funcionalidade das peças ao longo do tempo. A cidade do Porto, no século XIX, emerge como importante centro produtor de ourivesaria em ouro e prata.

1. A Herança Leite Pereira e a Prataria Doméstica do Porto 1874

Este estudo de caso analisa a herança de D. Luísa Leopoldina Leite Pereira de Melo e Alvim, ocorrida em 1873, focando-se na prataria doméstica presente na Casa de São João Novo, no Porto. O inventário detalha um acervo significativo de objetos de prata, cuja avaliação se baseou no peso do metal. Destaca-se um conjunto de castiçais e arandelas como o item mais valioso. O inventário foi realizado por José Rodrigues Teixeira, ensaiador e contrastador de prata do Porto, em 20 de fevereiro de 1874, e dividido entre as co-herdeiras D. Gertrudes Emília Leite Pereira de Melo Alvim (futura Condessa de Campo Belo) e D. Helena Maria do Outeiro Leite Pereira Melo Alvim. A análise revela a diversidade de objetos de prata, incluindo salvas (com diferentes funções e ornamentações), peças de iluminação (espevitadeiras e castiçais), e um serviço para bebidas aparentemente completo para D. Gertrudes (cafeteira, bule, leiteira, açucareiro e taça), enquanto D. Helena recebeu itens aparentemente avulsos. A diversidade tipológica demonstra a variedade de prataria doméstica presente nas casas das elites portuguesas na época, incluindo objetos de aparato, decoração, serviço de mesa e bebidas, iluminação, escrita e higiene. A presença de itens menores, como argolas, coadores e saquinhos para dinheiro, também é relevante, indicando os objetos cotidianos das elites portuenses.

2. Tipologias e Práticas Sociais na Prataria Doméstica Oitocentista

A análise da prataria da herança Leite Pereira permite uma melhor compreensão do acervo doméstico oitocentista do Porto, área ainda pouco explorada documentalmente. A investigação destaca a diversidade tipológica da prataria doméstica, organizada em grupos funcionais: peças de aparato e decoração, de serviço (mesa e bebidas), iluminação, escrita e higiene. Nos serviços de chá e café, o contraste avalia as peças individualmente, o mesmo acontecendo com os talheres. A presença de salvas em número considerável evidencia seu papel nas práticas sociais da época, algo que a pesquisa considera necessitar de uma melhor especificação. A análise mostra também que, mesmo nas casas abastadas, os serviços de chá e café nem sempre eram completos, refletindo aquisições ao longo das gerações. A investigação sugere que a crescente complexidade social da Belle Époque levou a um investimento maior em objetos para grandes festas e jantares, tema que necessita de maior investigação em Portugal e no Brasil. A investigação enfatiza a importância de entender a relação entre objetos e práticas sociais para uma compreensão completa do modus vivendi das elites.

3. O Porto como Centro Produtor de Ourivesaria no Século XIX

A segunda metade do século XIX viu o Porto consolidar-se como o principal centro produtor de ourivesaria de ouro e prata em Portugal. O documento destaca a necessidade de sistematização do conhecimento sobre essas peças, até agora pouco estudadas. Apesar da falta de investigação sistemática, o texto menciona a crescente publicação de evidências sobre a posse e fruição de adornos preciosos pelas populações do Porto e arredores, particularmente no que diz respeito a jóias e adornos de ouro. Um documento presente no Arquivo Histórico Municipal do Porto é utilizado para ilustrar a produção de prataria religiosa e civil da época, inserida no contexto do Segundo Romantismo na cidade. A grande quantidade de ourives gerava um fluxo considerável de objetos em ambos os metais preciosos, destinados a uso pessoal, doméstico ou religioso, tanto para o consumo interno quanto para exportação para o Brasil. O estudo destaca a importância deste documento para o conhecimento das tipologias de prataria em execução no Porto, tanto para uso civil (prataria profana) quanto para uso religioso em oratórios particulares, principalmente nas casas mais abastadas da cidade e província.

III. Jóias e Artes Decorativas no Brasil Inventários em Minas Gerais

A investigação estende-se ao Brasil, com foco em inventários post-mortem em Mariana e Ouro Preto (Minas Gerais) dos séculos XVIII e início do XIX. Embora a prataria doméstica seja menos abundante do que jóias e outros adornos preciosos, a pesquisa revela a presença de talheres e alguns conjuntos para servir bebidas, como bacias e jarros. O inventário do Coronel Manuel da Guerra de Sousa Castro Araújo Godinho (1814) em Vila Rica destaca um rico acervo de prataria, incluindo um serviço completo de chá e café, castiçais e uma escrivaninha, indicando a riqueza e sofisticação dos costumes da época colonial.

1. Prataria Doméstica em Inventários Post Mortem de Mariana e Ouro Preto

Em busca de peças de joalharia para um estudo regional em Mariana e Vila Rica (Ouro Preto), Minas Gerais, a pesquisa encontrou, em inventários post-mortem do século XVIII e início do XIX, alguns objetos de prataria de uso doméstico. A amostra analisada, embora não abrangente, revela a presença de prataria, embora em quantidades limitadas e com pouca variedade tipológica, principalmente em Mariana. A maior parte das peças encontradas se enquadra no universo dos talheres (facas, colheres e garfos), mas em número reduzido. Essa escassez de prataria doméstica pode ser explicada por fatores como a proibição do exercício de ourives de prata ou a ausência de um hábito generalizado de possuir objetos de prata. Em contraste, as jóias e outros adornos preciosos se mostram bem mais abundantes nestes inventários, indicando um padrão de consumo diferenciado entre esses tipos de bens. A pesquisa destaca a disparidade entre a abundância de jóias e a escassez de prataria doméstica, questionando as razões socioeconômicas por trás desta diferença.

2. O Inventário do Coronel Manuel da Guerra de Sousa Castro Araújo Godinho 1814

O inventário post-mortem do Coronel Manuel da Guerra de Sousa Castro Araújo Godinho, morador na Rua Direita de Vila Rica, falecido no Rio de Janeiro em 1814, destaca-se pelo acervo mais volumoso em objetos de prata. A peça principal é um conjunto de bacia e jarro de prata, fundamental como expressão de sociabilidade no Antigo Regime. O inventário também inclui um grande faqueiro, com talheres para mais de uma dezena de pessoas, além de outros utensílios de servir, como colher de sopa e arroz, faca e garfo de trinchar, e colheres de chá. Um serviço completo de chá e café (cafeteira, bule, leiteira e açucareiro), com acessórios como escumadeira e tenaz para açúcar, completa o conjunto. Todos os talheres estavam num estojo de faqueiro de lixa preta, forrado a veludo carmesim com espiguilha de ouro, avaliado em 150$000 réis. O acervo incluía ainda castiçais de prata e casquinha, uma espevitadeira, e duas salvas. A escrivaninha completa o inventário, com uma avaliação de 39$500 réis. A descrição do conjunto indica o requinte e a complexidade da sociedade colonial brasileira, onde cada detalhe demonstrava status social. A avaliação de algumas peças considerava o 'feitio', destacando a importância estética além do valor material.

IV.Conclusão Cooperação e Pesquisa Futura em Artes Decorativas Luso Brasileiras

O estudo conclui enfatizando a necessidade de maior cooperação entre pesquisadores portugueses e brasileiros para preencher as lacunas no conhecimento das Artes Decorativas luso-brasileiras. A forte ligação histórica entre os dois países, inclusive através da emigração, justifica uma abordagem colaborativa em projetos futuros, visando uma pesquisa sistemática e abrangente sobre diversas tipologias de objetos, desde mobiliário a jóias, abarcando os séculos XVIII e XIX e as suas relações com o Oriente.

1. A Necessidade de Cooperação Luso Brasileira em Pesquisa de Artes Decorativas

A conclusão reforça a necessidade de uma maior colaboração entre pesquisadores portugueses e brasileiros para avançar no conhecimento das Artes Decorativas em ambos os países. A conexão histórica entre Portugal e Brasil, que se estende até 1822 e além, fortalecida pela imigração nos séculos XIX e XX, torna fundamental uma abordagem conjunta e sistemática. O estudo destaca a importância de explorar as evidências deste relacionamento multissecular, presentes em todo o Brasil e conectadas às artes desenvolvidas em Portugal Continental e Ilhas, incluindo a influência oriental. A análise de inventários, por exemplo, ilumina a riqueza e complexidade das Artes Decorativas em ambos os territórios, indicando a necessidade de estudos comparativos e interdisciplinares para uma compreensão completa. A cooperação transatlântica é apresentada como crucial para impulsionar projetos conjuntos e uma pesquisa sistemática e coerente, permitindo avanços substanciais no conhecimento desta área.

2. Perspectivas Futuras e Projetos Colaborativos

A conclusão enfatiza a urgência de promover a cooperação na pesquisa entre Portugal e o Brasil, buscando projetos conjuntos que permitam uma investigação mais sistemática e abrangente das Artes Decorativas. O objetivo é superar a fragmentação atual da pesquisa, impulsionando trabalhos de fundo que permitam avanços substanciais no conhecimento dessas áreas. Tanto em termos de artes integradas ou móveis, quanto nas artes de ornamento humano, a colaboração internacional é apontada como a chave para uma pesquisa mais eficiente e profunda. O texto defende a promoção de uma pesquisa estruturada e coerente, que permita a produção de resultados palpáveis e a construção de um conhecimento mais completo e integrado sobre as Artes Decorativas luso-brasileiras. A interligação entre Portugal Continental, Açores e Brasil, juntamente com a dimensão relacionada ao Oriente, precisa ser explorada em maior profundidade através de projetos conjuntos que permitam uma análise mais abrangente e colaborativa.

Referência do documento

  • Aspectos da cultura material nos inventários post-mortem da capitania do Maranhão, nos séculos XVIII e XIX (Mota, Antónia da Silva)