Assistência ao doente moribundo no século XVIII

Cuidados Paliativos Século XVIII

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Escola

Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa

Curso Cuidados Paliativos
Tipo de documento Dissertação (Mestrado)
Idioma Portuguese
Formato | PDF
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Resumo

I.A Tradição de Cuidados Paliativos Um Olhar Histórico

Apesar do conceito moderno de Cuidados Paliativos ser recente, a assistência a doentes moribundos possui raízes antigas. Já no século XVIII, mesmo com as limitações do conhecimento da época, existia preocupação com o alívio do sofrimento daqueles em situação de morte iminente. O processo de morrer ocorria, geralmente, em casa, em ato público e organizado, contrastando com a medicalização e hospitalização atuais. A crença religiosa na vida eterna influenciava a aceitação da morte como parte do ciclo natural (nascer, crescer, declinar). Aliviar o sofrimento e ajudar a morrer em paz eram essenciais para aqueles que prestavam assistência, guiados por um imperativo moral e pela caridade.

1. A Assistência aos Moribundos no Século XVIII Um Contraste com a Modernidade

O texto inicia contrastando a concepção moderna de cuidados paliativos com as práticas históricas de assistência a doentes moribundos. Apesar da relativa novidade do conceito de cuidados paliativos, a preocupação com o alívio do sofrimento em situações de morte iminente já era evidente no século XVIII. Embora as limitações de conhecimento científico e tecnológico fossem significativas na época, a preocupação com aqueles que sofriam e se encontravam próximos da morte era notória. O processo de morrer era, em regra, um ato público, realizado em casa, na cama do doente, com um protocolo conhecido e presidido pelo próprio moribundo. A morte era parte da vida familiar, encarada com resignação e fé em Deus, em contraste com a visão atual, muitas vezes medicalizada e hospitalar, onde a morte tende a ser ocultada e dissimulada. A citação: “A crença de que originalmente Deus criou o homem para a vida e a eterna felicidade, fundamenta a esperança na transcendência da vida e a disposição de manter a graça do sopro de vida no Ser Humano para sempre. A morte foi introduzida na vida como ocorrência do ciclo biológico: nascer, crescer, desenvolver-se e encaminhar-se para o declínio.” ilustra a perspectiva religiosa da época, influenciando profundamente a percepção da morte e do morrer.

2. A Natureza da Assistência e a Caridade como Princípio Norteador

A assistência aos moribundos no passado estava intrinsecamente ligada ao conceito de caridade. O verbo ‘assistir’, sinônimo de ajudar, auxiliar ou socorrer os mais necessitados, define a essência desta prática. A caridade era a marca principal dessa assistência, representando a solidariedade com o sofrimento alheio e a busca de alívio da dor, dentro das possibilidades disponíveis. A assistência prestada, especialmente pelos enfermeiros, dependia não só do conhecimento médico de saúde e doença, mas também dos sentimentos de humanidade que impulsionam o serviço ao próximo, particularmente àqueles em sofrimento e incapacitados de prover suas próprias necessidades. A citação de Margarida Vieira: “…Cuidar, mais do que um saber científico, uma ação técnica ou uma relação interpessoal, deve ser um imperativo moral que fundamente o exercício da Enfermagem na defesa e preservação da dignidade da pessoa que, como enfermeiros cuidamos” (Vieira, 1995), reforça a importância do imperativo moral e da dignidade humana nesse contexto histórico de assistência. A par da dimensão humana, a assistência se imbrica com os conhecimentos e práticas da época.

3. As Raízes Históricas da Enfermagem Da Instintiva à Religiosa

A origem da enfermagem é explorada desde as práticas instintivas de saúde em sociedades pré-históricas, associadas ao trabalho feminino em grupos nômades, até suas raízes religiosas mais profundas. Em uma fase inicial da evolução da civilização, essas ações garantiam a sobrevivência humana, com as mulheres desempenhando um papel central no cuidado dos doentes e enfermos, oferecendo higiene e alimentação. A experiência e o conhecimento empírico eram fundamentais para aconselhamento e intervenção. Contudo, a raiz mais profunda da enfermagem é religiosa, muitas vezes oculta pelas instituições de impérios, reinos e repúblicas. As práticas mágico-sacerdotais destacavam a relação entre religião e saúde, com templos servindo simultaneamente como locais de culto e recuperação da saúde. Esta relação se estendeu do Antigo Egito à Grécia clássica, aos hospitais de inspiração cristã e aos muçulmanos, sempre em um contexto de crenças dominantes. A parabilidade do Bom Samaritano ilustra a caridade incondicional, destacando a contradição entre religiosidade e ações efetivas de ajuda ao próximo, independente de crenças.

II.Figuras Históricas na Assistência aos Moribundos

O texto destaca figuras importantes na história da assistência aos moribundos. Cicely Saunders, fundadora do movimento moderno de Hospice e do St. Christopher's Hospice (1967), revolucionou os cuidados com pacientes terminais, integrando alívio da dor com cuidado humanizado. São Camilo de Lellis (1550-1614), fundador da Congregação dos Ministros dos Enfermos, dedicou sua vida aos doentes e à organização de hospitais, sendo considerado padroeiro dos doentes, hospitais e enfermeiros. Luísa de Marillac (1591-1660), co-fundadora das Filhas da Caridade, dedicou-se ao serviço aos pobres e doentes, expandindo a rede de serviços de assistência.

1. Cicely Saunders A Fundadora do Movimento Moderno de Hospice

O texto destaca Cicely Saunders como uma figura crucial na história dos cuidados paliativos modernos. Iniciando sua carreira como enfermeira e assistente social, ela posteriormente estudou medicina com o objetivo específico de cuidar bem dos doentes terminais, frequentemente negligenciados pela medicina tradicional. Saunders é reconhecida como a fundadora do movimento moderno de Hospice, tendo fundado o St. Christopher's Hospice em 1967. Este hospice inovador adotou uma visão holística da pessoa humana, integrando o alívio da dor e o controle de sintomas com cuidado humanizado, ensino e pesquisa clínica. Essa nova filosofia de cuidados direcionados a doentes sem possibilidades terapêuticas influenciou profundamente os cuidados de saúde em todo o mundo, alterando as atitudes em relação à morte, ao morrer e ao luto. A citação de Barbara Monroe, diretora administrativa do St. Christopher's Hospice, resume seu impacto: “A visão e o trabalho de Cicely Saunders transformou o cuidado dos que estão a morrer e a prática da medicina no Reino Unido e no Mundo”. A criação do St. Christopher's Hospice demonstra o impacto da sua visão holística.

2. São Camilo de Lellis A Devoção à Assistência aos Enfermos

São Camilo de Lellis (1550-1614) é apresentado como outra figura fundamental na história da assistência aos enfermos. Proveniente de uma família nobre italiana, teve uma vida marcada por experiências contrastantes, incluindo um período na vida militar, vício em jogos de azar e uma profunda conversão religiosa. Após um período de sofrimento físico e fragilidade econômica, encontrou abrigo em um convento de Capuchinhos. Em 1582, teve a inspiração para criar uma companhia de homens que socorressem os enfermos sem recompensa, motivado pela observação da carência de alívio para os doentes. Ordenado sacerdote aos 34 anos, fundou a Congregação dos Ministros dos Enfermos, aprovada pelo Papa Sisto V em 1586 e elevada a Ordem Religiosa em 1591. São Camilo faleceu em Roma, em 14 de Julho de 1614. Sua importância é reconhecida pela Igreja Católica, sendo declarado padroeiro dos doentes, hospitais e enfermeiros. A sua vida é marcada pela sua profunda dedicação aos necessitados, fundando uma ordem que prestava cuidados sem esperar recompensas materiais.

3. Luísa de Marillac e as Filhas da Caridade Expansão da Assistência Social

Luísa de Marillac (1591-1660) é apresentada como uma figura chave na expansão da assistência aos pobres e doentes. Nascida em família nobre, teve uma breve experiência em um convento dominicano antes de casar. Após a morte de seu esposo, em 1625, vivenciou uma profunda transformação espiritual, guiada por uma visão em que se via servindo os pobres em comunidade. Esta visão levou-a a colaborar com Vicente de Paulo, na Congregação da Missão (Lazaristas), a partir de 1629, nas Confrarias da Caridade de paróquias francesas. Seu trabalho incluía a avaliação da qualidade dos serviços, a revisão de contas e relatórios e o encorajamento aos trabalhadores. Em 1633, começou a formar jovens para atender às necessidades dos pobres, dando origem à comunidade das Filhas da Caridade. A administração da rede de serviços em constante evolução, inspirada por ela e por Vicente de Paulo, demonstra uma atuação inovadora em assistência social, e sua canonização e reconhecimento como Patrona das Obras Sociais atesta sua relevância histórica no campo dos cuidados aos necessitados. A citação de Vicente de Paulo retrata a sua filosofia de trabalho.

III.A Enfermagem em Portugal Origens e Desenvolvimento no Século XVIII

Em Portugal, a enfermagem tem suas raízes nas Misericórdias e ordens religiosas, como as Filhas da Caridade e os Irmãos de São João de Deus. A influência de instituições como a Casa Pia de Lisboa (fundada por Diogo de Pina Manique), e a atuação de figuras como João Cidade (fundador da ordem dos Irmãos de S. João de Deus em Espanha), demonstram o esforço histórico para a assistência aos necessitados. O século XVIII, apesar das limitações, viu iniciativas para uma melhor formação de enfermeiros, como a proposta de frequência de cursos de medicina na Universidade de Coimbra. A obra “Postilla Religiosa e a Arte dos Enfermeiros”, de Frei Diogo de Santiago (1741), destaca-se como um importante manual de formação em cuidados de enfermagem na época, abordando aspectos físicos e espirituais dos cuidados, antecipando conceitos de bem-estar holístico.

1. A Enfermagem em Portugal Raízes nas Misericórdias e Ordens Religiosas

A história da enfermagem em Portugal acompanha um percurso semelhante ao de outros países de tradição cristã. Seus primórdios estão ligados às Misericórdias e às ordens religiosas que se estabeleceram no país, criando uma base para a enfermagem que persiste até hoje. Entre as ordens mais relevantes, destacam-se as Irmãs da Caridade e os Irmãos de São João de Deus, que desempenharam um papel crucial na assistência aos doentes e necessitados. A influência dessas instituições religiosas se estendeu desde os cuidados básicos em hospitais e asilos até ao trabalho paroquial, incluindo assistência domiciliar a pobres e doentes. A frase de São Vicente de Paulo, “o seu convento deve ser a casa dos pobres; a sua cela a câmara de sofrimento; a sua capela a Igreja da paróquia; o seu claustro as ruas da cidade e as salas do hospital” (Donahue, 1985, p. 222), resume bem a abrangência do trabalho das Filhas da Caridade, mostrando o quanto os cuidados transcendiam os muros das instituições, estendendo-se à comunidade. O cuidado e a assistência aos necessitados eram responsabilidades assumidas pelas ordens religiosas.

2. Iniciativas de Formação e o Papel dos Irmãos de São João de Deus

Os Irmãos de São João de Deus são creditados pelas primeiras iniciativas para uma formação mais estruturada de enfermeiros em Portugal. Em 1793, o Comissário Geral da Ordem Hospitaleira de São João de Deus solicitou a Diogo de Pina Manique que os irmãos frequentassem o curso de medicina na Universidade de Coimbra, visando aprimorar seus cuidados aos doentes. Apesar da morte de Pina Manique ter impedido a implementação imediata dessa medida, a solicitação revela a intenção de abordar o problema da formação em enfermagem. A frase “serviu pelo menos para demonstrar a vontade expressa por certos homens públicos em encarar de frente o problema da enfermagem” (Nogueira, 1982, p. 68), destaca a importância desse pedido como um passo inicial, embora não bem sucedido, para a profissionalização da enfermagem. A falta de êxito demonstra as dificuldades em implementar reformas no sistema de saúde. Apesar das iniciativas pontuais, a enfermagem permaneceu amplamente ligada às práticas hospitalares tradicionais.

3. A Postilla Religiosa e a Arte dos Enfermeiros Um Marco na Literatura de Enfermagem em Portugal

A “Postilla Religiosa e a Arte dos Enfermeiros”, escrita por Frei Diogo de Santiago e impressa em 1741, representa um marco na literatura de enfermagem em Portugal, sendo considerado o primeiro manual de formação em cuidados de enfermagem em língua portuguesa. A obra, além de abordar aspectos da vida religiosa e disciplina, descreve ensinamentos para o cuidado de doentes, incluindo tratamentos para diversas enfermidades e orientações para o cuidado diário, mantendo alguma atualidade científica. A apresentação da edição fac-símile de 2005, por Luís Graça, destaca a obra como um manual didático de iniciação à vida religiosa e à prática da hospitalidade, oferecendo “claras luzes em breves períodos”. Frei Diogo propõe cuidados de nível físico e espiritual, antecipando o conceito de bem-estar integral e holístico, valorizando o fator humano e contestando o reducionismo científico e tecnológico. O tratado aborda a responsabilidade e a ética profissional na enfermagem. A obra evidencia uma preocupação com o desenvolvimento dos cuidados de enfermagem e seu impacto na saúde dos pacientes.

IV.A Morte no Século XVIII e a Visão Contemporânea

No século XVIII, o processo de morrer era um ato público, familiar e, muitas vezes, religioso. A “boa morte”, preparada e com o apoio da família e comunidade, contrastava com a “má morte” súbita e inesperada. A assistência espiritual era crucial. No entanto, a partir do final da Idade Média, observa-se uma crescente tendência para isolar o moribundo. A visão contemporânea, em contraste, caracteriza-se pela medicalização e hospitalização da morte, frequentemente em isolamento e com sedação, afastando-se da participação familiar e da atenção espiritual, conforme descrito por autores como Sapeta e Torga. A busca por uma “boa morte”, com a mitigação de sofrimento físico e psicológico, mantém-se relevante nos cuidados paliativos atuais.

1. A Morte no Século XVIII Um Ato Público e Familiar

O texto contrasta a experiência da morte no século XVIII com a realidade contemporânea. No século XVIII, o processo de morrer era tipicamente um evento público, familiar e muitas vezes permeado por forte influência religiosa. Ocorreu, na maioria das vezes, em casa, na cama do doente, em um ato organizado, com um protocolo conhecido e presidido pelo próprio moribundo. A morte era parte integrante da vida familiar, encarada com resignação e fé, em contraste marcante com a atual medicalização e hospitalização do processo de morrer. A morte era vivenciada com menos medo e desespero, marcada pela confiança em Deus. A 'boa morte' era um ideal, uma morte preparada e planejada, diferente da 'má morte', repentina e inesperada, considerada vergonhosa, quase um castigo divino, porque impedia a despedida e a preparação espiritual. A assistência espiritual era já uma preocupação, com os cuidadores buscando ajudar o moribundo a 'bem morrer', facilitando esse processo. A crença religiosa na vida eterna influenciava a aceitação da morte como parte do ciclo natural, de acordo com a visão de mundo da época. A preparação espiritual era tão importante quanto os cuidados físicos.

2. A Transformação da Experiência da Morte Do Ato Público ao Isolamento Hospitalar

A partir do final da Idade Média, historiadores observam uma mudança gradual na cultura ocidental em relação à morte, com uma tendência crescente para o isolamento do moribundo. Esse processo de exclusão se acentuou, criando um ambiente de evitação, silêncio, medo e tabus em torno da morte. Em contraponto ao padrão medieval, onde o moribundo reunia familiares e amigos para a despedida, a modernidade se caracteriza pelo isolamento e medicalização da morte. A morte frequentemente acontece em hospitais, com os doentes relegados a leitos, sedados, inconscientes, muitas vezes conectados a aparelhos, aguardando o fim da atividade cerebral para a declaração oficial de óbito. As rotinas fúnebres, antes de responsabilidade da família, passam para técnicos de saúde e agências funerárias, isolando o doente do seu círculo familiar e prolongando o processo de 'entrega à morte'. As citações de Sapeta e Torga ilustram essa transformação: a dessocialização da morte e seu confinamento aos hospitais, resultando em experiências solitárias e marcadas por sofrimento, angústia e medo. A impessoalidade e a redução do indivíduo a um 'manequim dorido', manipulado por mãos estranhas, refletem essa mudança drástica.

3. A Busca pela Boa Morte em Perspectiva Contemporânea e Histórica

Embora as formas de lidar com a morte tenham mudado drasticamente, a busca por uma 'boa morte' persiste, tanto no passado como na atualidade. No século XVIII, a 'boa morte' consistia na preparação para a morte, no contexto familiar e espiritual. A morte súbita era vista como uma desgraça maior que a própria morte, porque impedia esse processo. Atualmente, a busca pela 'boa morte' está em sintonia com a filosofia dos cuidados paliativos, que visam mitigar dores e desconfortos físicos e psicológicos, tanto para o paciente quanto para seus familiares e equipe médica. A comunicação sincera, o diálogo entre os envolvidos e a consideração dos desejos do moribundo são fundamentais. O ideal é que a morte ocorra na residência do doente, em seu ambiente familiar, com clareza nos papéis de todos os envolvidos. A assistência espiritual, a abordagem dos aspectos existenciais e espirituais, especialmente nas fases terminais da vida, continua a desempenhar um papel significativo, almejando que a pessoa alcance a paz necessária para a passagem. A preparação espiritual e o convívio com os seus queridos ganham destaque.