A criminalidade transnacional, os Açores e a segurança da União Europeia

Criminalidade Transnacional nos Açores

Informações do documento

Escola

Universidade dos Açores

Curso Mestrado
Local Ponta Delgada
Tipo de documento Dissertação de Mestrado
Idioma Portuguese
Formato | PDF
Tamanho 2.19 MB

Resumo

I.Conceito de Crime Organizado Transnacional COT

O documento define o crime organizado transnacional (COT), focando sua natureza complexa e a falta de consenso sobre sua conceituação. A abordagem policial enfatiza indicadores criminológicos como planejamento e execução, enquanto a perspectiva jurídica se concentra na organização e duração das atividades ilegais. O COT é caracterizado como um ilícito grave, praticado por grupos com alto grau de organização buscando poder econômico, financeiro e político, recorrendo à corrupção e violência. O narcotráfico, como um exemplo chave, destaca-se pela sua ligação ao branqueamento de capitais e ao impacto devastador na saúde e na segurança nacional.

1. Dificuldades na Definição do Crime Organizado Transnacional

A principal dificuldade reside na ausência de uma definição consensual para o crime organizado transnacional (COT) entre estudiosos. Dependendo da área de conhecimento e prioridades, perspectivas distintas são desenvolvidas. A percepção da realidade é influenciada pelas visões do sistema judiciário, dos próprios infratores e da comunidade acadêmica, criando uma dialética objetiva-subjetiva. A abordagem policial foca indicadores criminológicos: planejamento, preparação, execução e utilização do produto do crime, além das relações entre atos e autores. Em contraponto, a perspectiva jurídica define o COT como um conceito organizativo-associativo, considerando a durabilidade do fenômeno, a pluralidade de pessoas envolvidas e a existência de uma estrutura constituída para atividade ilegal. Esta diversidade de abordagens acentua a complexidade inerente à definição precisa do COT e a necessidade de uma compreensão científica mais aprofundada para uma melhor definição normativa e combate efetivo.

2. Conceito Provisório de Crime Organizado e suas Características

Buscando uma melhor compreensão científica e a definição de uma atitude normativa adequada, o documento propõe um conceito provisório de crime organizado: um ilícito especialmente grave, praticado por grupos criminosos com sublime grau organizativo, buscando poder econômico, financeiro e político. A atuação se dá através da corrupção e violência (física e psicológica), controlando mercados ilícitos e garantindo trocas de bens e serviços de forma ilegal. A criação de empresas legítimas serve como fachada para o branqueamento de capitais obtidos por meio de atividades ilícitas. O crescimento exponencial dessa atividade delituosa levou a comunidade internacional, sob a égide das Nações Unidas, a adotar medidas jurídicas de criminalização, destacando-se a Convenção Única sobre Estupefacientes de 1961, a Convenção de Viena sobre Psicotrópicos de 1971 e a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas de 1988. Estas convenções impõem aos Estados obrigações como o controle de atividades lícitas relacionadas com drogas, a criminalização das fases do tráfico e a criminalização do branqueamento de capitais.

3. Crime Organizado Transnacional no Século XXI e a Globalização

No século XXI, o termo 'crime transnacional' é comum em diversas áreas, incluindo criminologia, política e segurança. Há quem veja o COT como resultado da simbiose entre o crime organizado clássico e a globalização, atribuindo o combate exclusivamente às autoridades judiciárias de cada país. Essa perspectiva, no entanto, é considerada simplista, pois o COT apresenta múltiplas formas e atividades, tornando sua definição complexa. A questão da inclusão ou não do terrorismo no COT é levantada, considerando-se o terrorismo um fenômeno complexo com motivações próprias (nacionalistas, religiosas, ideológicas), que exige respostas específicas, apesar de suas ligações com a criminalidade organizada (obtenção de armamento ilegal, imigração ilegal e narcotráfico). O tráfico de drogas, por exemplo, gera outros crimes como corrupção e delinquência, enfraquecendo Estados e suas instituições. O texto destaca a globalização como fator crucial para a expansão do COT, com o encurtamento de distâncias e aumento do comércio de bens, transferências de capitais e migração.

4. Impacto da Globalização e Novas Tecnologias no COT

A globalização afeta até mesmo pequenas vilas, com decisões tomadas em continentes distantes impactando a vida cotidiana. O fenômeno intrínseco às relações de poder, com núcleos de poder cada vez mais distantes dos indivíduos e locais afetados, torna as fronteiras insuficientes para regular a livre troca de informações e o trânsito de pessoas e capitais. As novas tecnologias, além de sua utilidade social, são instrumentos-chave para o COT, facilitando a comunicação, evitando a acumulação de provas físicas e criando redes de fluxo internacional de capitais. A crise de valores gerada pela primazia de bens materiais e a devastação das relações interpessoais contribuem para o crescimento do COT, que se tornou um problema global. O lucro fácil e desmedido, sem sentido moral e ancorado em sentimentos de proteção e impunidade, alimentados pela corrupção política, torna o COT uma modalidade criminal temida. A história demonstra a presença constante de drogas em diversas sociedades, associadas a rituais, estratégias militares e sociais. O tráfico internacional de drogas é impulsionado pelo consumo, com a comercialização dependendo da procura.

II.O Narcotráfico e a Globalização

O narcotráfico é apresentado como um crime global, ameaça à saúde pública e à estabilidade econômica e política dos Estados. A globalização, com o aumento do comércio e da migração, facilita a expansão do tráfico de drogas, criando novas oportunidades e desafios para o combate ao narcotráfico. A Convenção Única sobre Estupefacientes de 1961 e outras convenções internacionais buscam criminalizar o tráfico ilícito e fortalecer a cooperação internacional.

1. Narcotráfico Uma Ameaça Global

O narcotráfico é apresentado como uma atividade ilícita de comercialização de drogas, constituindo um crime planetário com ameaças à saúde e integração social do indivíduo consumidor. Além disso, o narcotráfico impacta o desenvolvimento político e econômico da sociedade e a segurança nacional dos Estados, afetando países ricos e pobres, produtores, países de trânsito, importadores e todas as classes sociais. A criminalização internacional da produção e do tráfico de drogas se justifica pelos efeitos devastadores do consumo, incluindo morte e dependência. A frase 'aos países ocidentais crucificar os alegados produtores por um mal que é da responsabilidade de todos' ilustra a complexidade do problema e a necessidade de uma abordagem que ultrapasse a simples responsabilização dos produtores.

2. Globalização como Fator de Expansão do Tráfico de Drogas

A globalização é apontada como o principal agente na expansão do narcotráfico. A expansão além das fronteiras nacionais do sistema social, cultural e econômico, com setores antes restritos ao âmbito intraestatal (meio ambiente, tecnologia, indústria, comércio e economia em geral) agora dispostos em função de recursos e demandas globais, impacta todos os domínios da atividade humana. O desenvolvimento tecnológico encurtou distâncias, ocasionando um aumento exponencial do comércio de bens, transferência de capitais e migração de pessoas. A humanidade passou a funcionar em padrões transcontinentais de interação e exercício do poder, com relações internacionais assumidas por indivíduos, grupos e sociedades, impactando eventos mundiais. A globalização afeta as atividades cotidianas dos cidadãos, mesmo em pequenas vilas, com decisões tomadas em continentes distantes, mostrando que os núcleos de poder estão distantes dos sujeitos e locais que sofrem as consequências. As fronteiras deixaram de ser barreiras à livre troca de informação e ao trânsito de pessoas e capitais, e os limites legais estatais se mostram insuficientes para regular o fenômeno.

3. Resposta Internacional e Convenções Internacionais

Diante do crescimento exponencial do narcotráfico, a comunidade internacional, sob a égide das Nações Unidas, adotou medidas jurídicas para criminalizar essa atividade. Convenções como a Convenção Única sobre Estupefacientes de 1961 (alterada em 1972), a Convenção de Viena sobre Psicotrópicos de 1971 e a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas de 1988 impõem aos Estados diversas obrigações. Essas obrigações incluem o controle de atividades lícitas relacionadas com drogas, a criminalização das diferentes fases do tráfico (produção, distribuição, comércio) e a criminalização do branqueamento de capitais. A União Europeia, no âmbito da cooperação internacional, estabeleceu acordos com países como a Colômbia (2002) e implementou o Plano de Ação da União Europeia em matéria de luta contra a droga 2009/2012, com medidas para combater o tráfico na região do Caribe. O projeto PRELAC (Prevention of the diversion of drugs precursors in Latin America and the Caribbean) também é mencionado, buscando reforçar o controle de precursores químicos e melhorar a comunicação e cooperação entre os países.

III.O Papel Geoestratégico dos Açores no Tráfico de Drogas

A localização geográfica dos Açores os torna um ponto estratégico no tráfico de drogas, especialmente na rota do norte do Atlântico, principalmente na movimentação de cocaína. Embora as apreensões de cocaína na região sejam menores que as do continente, sua importância reside na posição estratégica como plataforma de passagem para a Europa, facilitando o transito de embarcações de recreio, de pesca e de carga. A cooperação internacional entre países de origem e destino é fundamental para o combate eficaz ao narcotráfico na região, utilizando-se também de mecanismos de entregas controladas e ações encobertas.

1. A Posição Geográfica dos Açores e o Tráfico de Cocaína

A localização geográfica dos Açores é destacada como fator crucial para seu papel no tráfico de drogas, particularmente na rota do norte do Atlântico. Apesar das apreensões de cocaína na região serem relativamente baixas em comparação com o total nacional (3 toneladas nos Açores versus 72,5 toneladas em Portugal entre 2005-2015), o valor dessas 3 toneladas (146 milhões de euros no mercado negro) e o fato de parte da cocaína apreendida na costa portuguesa ter passado pelas águas açorianas demonstram a significância do arquipélago. Muitas embarcações que passam pelos Açores seguem para a Europa do Norte (França, Reino Unido, Holanda), indicando a região como ponto crucial no transporte de drogas para mercados consumidores europeus. A análise se concentra no tráfico de cocaína, enfatizando sua importância econômica e a necessidade de se considerar o impacto global do tráfego que passa pela região, mesmo que as apreensões locais não revelem todo o cenário.

2. Tipos de Embarcações e Rotas Utilizadas no Tráfico

Embarcações de recreio são o principal meio utilizado no tráfico de cocaína pela rota norte, devido às condições favoráveis dos ventos do anticiclone dos Açores. Essas embarcações permitem reparos, descanso das tripulações e reabastecimento durante a viagem para a Europa continental. Embarcações de carga geral, mercantes, porta-contêineres e pesqueiras também são utilizadas, embora em menor escala. O aumento do controle na fronteira externa marítima da União Europeia, buscando conter a imigração ilegal do norte da África, sugere uma possível substituição de embarcações de alta velocidade por embarcações de recreio, para melhor dissimulação. As embarcações de pesca, particularmente as de maior porte, possuem autonomia para deslocações até a costa da América do Sul ou região do Caribe, passando por pontos intermediários no Oceano Atlântico ou costa africana. A integração da atuação ilícita nas atividades de pesca aumenta a probabilidade de sucesso no transporte de drogas. Segundo a Europol, os países de desembarque não são necessariamente os de venda e consumo, com o Reino Unido no topo da pirâmide.

3. Os Açores como Plataforma Giratória e a Cooperação Internacional

De acordo com o coordenador da Polícia Judiciária de Ponta Delgada, João Oliveira, a cocaína vinda do Caribe não se destina ao mercado nacional ou regional dos Açores, que funciona exclusivamente como plataforma giratória, ponto de passagem. A intervenção das autoridades açorianas muitas vezes se dá por solicitação de outras autoridades internacionais, que solicitam a monitorização e o controle de embarcações até ao porto de destino, ficando a cargo do país de destino a atuação legal. A chamada 'Bandeira de Conveniência', prática de registrar embarcações em Estados diferentes dos proprietários, é mencionada como um fator que dificulta o controle e a fiscalização. A complexidade do fenômeno torna o combate ao narcotráfico nos Açores inviável apenas em nível nacional ou regional. A cooperação judiciária entre Estados é fundamental, dada a dispersão da ação criminosa no tempo e no espaço. A questão levantada é se a União Europeia está a rentabilizar a posição estratégica dos Açores no combate ao narcotráfico, considerando que a importância da região não está na quantidade de apreensões locais, mas sim em sua contribuição para a cooperação internacional.

IV.Combate ao COT Cooperação Internacional e o Papel da União Europeia

O documento argumenta que o combate ao COT exige cooperação internacional, ultrapassando as ações individuais dos Estados. A União Europeia tem um papel crucial, devendo aprimorar a legislação, reforçar a cooperação policial e judiciária, e reconhecer a importância estratégica dos Açores na segurança europeia. A Europol e outras organizações internacionais desempenham um papel vital no intercâmbio de informações e na coordenação de ações contra o crime organizado transnacional. A Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas de 1988 e a Convenção de Montego Bay são citadas como exemplos de instrumentos legais para combater o problema. O tráfico marítimo é um desafio específico, exigindo a cooperação de vários países e órgãos, tais como a Polícia Judiciária de Portugal, Guarda Nacional Republicana e Autoridade Tributária e Aduaneira.

1. A Necessidade de Cooperação Internacional no Combate ao COT

O combate ao crime organizado transnacional (COT) requer, segundo o documento, uma cooperação internacional efetiva, pois se trata de um flagelo mundial sem fronteiras. A abordagem que atribui a responsabilidade do combate exclusivamente às autoridades judiciárias de cada país é considerada insuficiente e simplista. A dispersão da ação criminosa no tempo e no espaço, ultrapassando diversas fronteiras, exige como resposta a cooperação judiciária entre os Estados. A simples intensificação de penas ou restrições às liberdades individuais não é apresentada como solução suficiente. Em vez disso, a ênfase é colocada na necessidade de uma ação conjunta, que envolva a revisão dos quadros jurídicos dos Estados-membros, aproximando legislações e suprimir lacunas. A cooperação policial e judiciária internacional é fundamental para enfrentar o COT de forma eficaz, reconhecendo a impossibilidade de um combate individual e pretensioso baseado apenas na vontade governamental de cada Estado. A ineficácia da justiça em alguns países, como Portugal, onde a ação processual penal se mostra ineficaz, é apontada como um exemplo da necessidade de colaboração internacional.

2. O Papel da União Europeia e a Importância da Europol

A União Europeia (UE) tem um papel crucial no combate ao COT, devendo desenvolver ações direcionadas para a revisão dos quadros jurídicos dos Estados-membros, aproximando legislações e eliminando lacunas. O investimento em cooperação policial e judiciária é essencial, encarando o COT como um problema global que transcende fronteiras nacionais. A Europol é destacada como um organismo intergovernamental com a missão de melhorar a cooperação policial entre os Estados-membros da UE, lutando contra o terrorismo, o tráfico ilícito de drogas e outras formas graves de criminalidade internacional. Suas funções incluem o intercâmbio de informações, análise de dados, comunicação entre serviços competentes, facilitação de inquéritos e gestão de bases de dados. A Convenção de Viena (1988) e a Convenção de Montego Bay também são referenciadas como exemplos de instrumentos legais que promovem a cooperação internacional para combater o tráfico ilícito de estupefacientes. A Convenção de Montego Bay, em especial, define as zonas marítimas e os princípios que regem a liberdade de circulação no alto mar e a jurisdição dos Estados costeiros, estabelecendo regras para a vigilância e fiscalização de navios suspeitos, incluindo em casos de tráfico de estupefacientes.

3. Contexto Nacional Português e a Cooperação com os Açores

Em Portugal, a criminalização do tráfico de estupefacientes é feita por legislação penal especial, com artigos específicos para o tráfico marítimo. A Polícia Judiciária tem o papel de coordenar ações de vigilância e fiscalização, enquanto a Guarda Nacional Republicana atua na vigilância costeira e a Autoridade Tributária e Aduaneira controla mercadorias. O Decreto Regulamentar n.º 86/2007 articula a ação das autoridades. A MAOC (N) (Maritime Analysis and Operations Centre - Narcotics), sediada em Lisboa, com elementos policiais de vários países e apoio militar, coordena ações de repressão, incluindo entregas controladas e ações encobertas. Medidas contra o branqueamento de capitais também são mencionadas como cruciais. A importância estratégica dos Açores na segurança das fronteiras europeias é ressaltada. A sugestão é que a UE fortaleça a cooperação com os Açores, criando uma equipa permanente do MAOC (N) na região, envolvendo autoridades regionais, nacionais e internacionais. Essa medida reforçaria a segurança europeia e daria aos Açores um lugar de destaque na segurança europeia na vertente atlântica.