
Incoerência na punição de “mulas”
Informações do documento
Autor | Isabela Ramos Frutoso Delmondes |
instructor | Alexandre Morais da Rosa, Doutor |
Escola | Universidade Federal de Santa Catarina |
Curso | Direito |
Tipo de documento | Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) |
Local | Florianópolis |
Idioma | Portuguese |
Formato | |
Tamanho | 1.20 MB |
Resumo
I. 06
Este estudo analisa a evolução da legislação brasileira sobre tráfico de drogas, focando na Lei 11.343/06. A pesquisa aborda as leis anteriores, como a Lei 6.368/76, comparando-as com a legislação atual e destacando as mudanças na abordagem do problema, incluindo a distinção entre usuário e traficante. A Constituição Federal de 1988 e a sua influência na criminalização do tráfico de drogas também são analisadas, contextualizando o atual modelo proibicionista e sua relação com normativas internacionais. A pesquisa busca compreender a complexidade do sistema, incluindo a atuação do Sisnad (Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas).
1. Legislação Antidrogas antes da Lei 11.343 06
O texto destaca a ausência de legislação específica sobre tráfico de entorpecentes no Código Criminal do Império (1830). Um primeiro passo foi dado com o Regulamento de 29 de setembro de 1851, que abordou a questão sob a ótica da política sanitária e da venda de substâncias medicinais. A criminalização se intensificou com a Codificação da República, com o Código de 1980 incluindo crimes contra a saúde. Avanços significativos ocorreram com a autonomização das leis criminalizadoras, especialmente os Decretos nº 780 (1936) e nº 2.953 (1938), e o Decreto-Lei nº 891 (1938), que alinhou o Brasil ao modelo internacional de controle de drogas, incluindo a relação de substâncias entorpecentes e normas restritivas. O período posterior à década de 1960 trouxe alterações no discurso sobre drogas, influenciando o atual modelo proibicionista. A Lei 6.368/76, apesar de avanço, apresentava deficiências, necessitando de modificações na concepção das condutas que causam danos sociais, buscando diferenciar as situações em que a conduta afeta mais o próprio agente do que a sociedade.
2. A Lei 6.368 76 e suas Inconsistências
A análise da Lei 6.368/76 evidencia a sobreposição do discurso jurídico-político ao médico-jurídico, com foco na eliminação do traficante como inimigo interno. Isso resultou em maior repressão ao comércio ilícito e em punições mais brandas para usuários e dependentes. O artigo 12 da lei previa penas severas (3 a 15 anos de reclusão) para diversas condutas relacionadas ao tráfico, sem distinção suficiente entre a gravidade das ações. A punição indiscriminada de condutas com diferentes níveis de ofensividade social gerou críticas e a necessidade de revisão legislativa. Salo de Carvalho destaca a elasticidade da pena (3 a 5 anos) como um mecanismo para o juiz dosar a pena em cada caso concreto, mas observa que, na prática, prevaleceram penalidades severas, sem distinção entre pequenos e grandes traficantes, afetando principalmente jovens de baixa renda.
3. A Promulgação da Lei 11.343 06 e suas Mudanças
A Lei 11.343/06 surgiu como uma tentativa de sintetizar legislações anteriores e atender às demandas sociais e políticas. A Constituição Federal de 1988, refletindo normas internacionais, conferiu tratamento severo ao tráfico de drogas, equiparando-o a crimes hediondos e tornando-o inafiançável. A nova lei alterou a terminologia, substituindo “substância entorpecente” por “droga”, para maior clareza. Apesar de manter o alto grau de proibicionismo e repressão, a Lei 11.343/06 introduziu diferenciações entre usuário e traficante, aplicando penas e medidas diferenciadas. Embora houvesse alterações na incriminação do comércio ilegal e um processo de descarcerização do porte de drogas para uso pessoal, a base ideológica proibicionista permaneceu inalterada, segundo Salo de Carvalho. A lei também instituiu o Sisnad (Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas) para articular e coordenar as atividades de prevenção, atenção, reinserção social e repressão ao uso de drogas.
4. Contexto Internacional e Implicações da Globalização na Política de Drogas
O texto discute o modelo de proibicionismo caracterizado pela transnacionalidade e identidade entre legislações mundiais. Rosa del Olmo argumenta que a globalização da repressão às drogas se insere em um projeto de transnacionalização do controle social, buscando superar as fronteiras nacionais no combate à criminalidade. Entretanto, a imposição de um discurso jurídico-político do centro para a periferia ignorou as especificidades locais, resultando em consequências negativas. Um exemplo citado é o etnocídio decorrente da inclusão da folha de coca na lista de drogas ilícitas, afetando culturas ancestrais dos povos andinos. A falta de consideração das questões sociais, políticas e econômicas locais, bem como da relação cultural entre a droga e os grupos sociais envolvidos, gerou resultados desastrosos.
II. 33 da Lei 11
O artigo se concentra no art. 33 da Lei 11.343/06, que define o crime de tráfico de drogas, analisando as diferentes condutas tipificadas (importar, exportar, transportar, etc.). Um foco principal é a figura da “mula” (“mula” tráfico de drogas), investigando se o tratamento punitivo atual é adequado para esse agente que transporta drogas, muitas vezes sem ter domínio sobre toda a operação. A pesquisa examina a aplicabilidade do §4º do art. 33, que prevê uma causa de diminuição de pena, e discute se essa benesse se aplica adequadamente às “mulas”. A análise considera a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a aplicação do §4º do artigo 33, mostrando a falta de um entendimento pacífico sobre o tema. As decisões judiciais analisadas demonstram diferentes interpretações sobre a participação da “mula” em organizações criminosas e a consequente impossibilidade ou não de aplicação da minorante.
1. Análise do Art. 33 da Lei 11.343 06 Conceito de Tráfico e Condutas Tipificadas
A seção analisa o artigo 33 da Lei 11.343/06, que define o crime de tráfico de drogas. O texto destaca que o conceito de ‘tráfico’ extrapola o sentido estrito, abrangendo diversas formas de produção, preparo e oferta de drogas. O artigo 33 é classificado como um tipo de ação múltipla, ou seja, mesmo que o agente pratique mais de uma ação descrita (importar, exportar, transportar, etc.), responde por um único crime, aplicando-se o princípio do ne bis in idem. A prática de qualquer uma das condutas previstas, além de violar a saúde pública, pode afetar outros bens jurídicos. A doutrina majoritária considera as condutas arroladas como de perigo abstrato, ou seja, a configuração do crime independe da efetiva lesão à saúde pública, bastando a prática de uma das condutas tipificadas nos verbos do artigo.
2. A Figura da Mula no Contexto do Tráfico de Drogas
O foco principal desta seção é a figura da “mula”, agente que se limita a transportar o material ilícito. A discussão central gira em torno da adequação do tratamento punitivo aplicado a essa figura. A análise questiona se a pena prevista no artigo 33 se aplica de forma justa a quem apenas transporta drogas, sem ter controle sobre a operação como um todo. O estudo destaca a complexidade em enquadrar a conduta da “mula” nas teorias de autoria e participação, abrindo espaço para discussão sobre a necessidade de uma tipificação penal mais específica para essa figura.
3. Jurisprudência e o 4º do Art. 33 Aplicação da Minorante para Mulas
Esta parte apresenta uma análise jurisprudencial, principalmente de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), sobre a aplicação do §4º do artigo 33, que prevê uma causa de diminuição de pena. A pesquisa demonstra a divergência jurisprudencial quanto à aplicação dessa minorante para “mulas”. O texto destaca a ausência de tratamento da questão teórica do concurso de agentes em relação ao tráfico de drogas na jurisprudência, limitando-se a tipificar a conduta da “mula” como crime de tráfico e aplicando a minorante em alguns casos. A análise de diversos Habeas Corpus revela diferentes interpretações sobre os requisitos para a concessão do benefício, como a primariedade, bons antecedentes e a não integração em organização criminosa. A quantidade e o tipo de droga apreendida também são fatores considerados pelas cortes.
4. Conclusão A Necessidade de um Tipo Penal Específico para a Mula
A conclusão reforça a necessidade de um tratamento jurídico diferenciado para a figura da “mula”, devido à incongruência na aplicação do §4º do artigo 33. O benefício previsto nesse parágrafo se baseia em condições pessoais do agente (primariedade, bons antecedentes, etc.), e não na natureza da conduta, tornando-o inadequado para casos de reincidência, por exemplo. A pesquisa argumenta que a conduta da “mula” não se encaixa perfeitamente em nenhuma das categorias de autoria ou participação tradicionais. A solução proposta é a criação de um tipo penal específico para o agente que atua como mero transportador, reconhecendo a disparidade entre a responsabilidade do transportador e os líderes das organizações criminosas no tráfico de drogas. A falta de uma definição jurídica precisa para a conduta da “mula” leva a um tratamento punitivo inconsistente.
III.Teorias da Autoria e Participação no Concurso de Agentes e o Caso da Mula
O documento explora as teorias da autoria e participação, incluindo a teoria monista e a teoria do domínio do fato (Teoria do domínio do fato). A análise busca identificar a posição jurídica da “mula” dentro do contexto do concurso de agentes no tráfico de drogas. A pesquisa argumenta que a figura da “mula” não se encaixa perfeitamente nas categorias tradicionais de autor ou partícipe, justificando a necessidade de um tratamento jurídico específico. A análise da jurisprudência revela que a qualificação da conduta da “mula” varia, e o estudo propõe a necessidade de uma alteração legislativa para definir melhor essa conduta.
1. Teorias da Autoria e Participação Monismo e Domínio do Fato
A seção inicia com uma discussão sobre as teorias da autoria e participação no concurso de agentes, contrastando a teoria monista com outras abordagens. A teoria monista, adotada pelo Código Penal brasileiro, considera autor todo aquele que contribui para o crime, respondendo integralmente pelo fato. Autores como Cezar Roberto Bitencourt e Francisco Muñoz Conde são citados, ressaltando a falta de distinção entre autor, partícipe, instigação e cumplicidade na teoria monista. Em contraponto, o texto apresenta um critério formal-objetivo, que define o autor como aquele que realiza a conduta descrita no tipo penal (o verbo nuclear), enquanto o partícipe contribui para a execução sem realizar a conduta principal. A teoria do domínio do fato é destacada por sua relevância para o estudo, pois permite uma análise mais profunda da participação em crimes complexos. O artigo 29 do Código Penal, embora adotando a teoria monista, introduz critérios de distinção entre autor e partícipe, possibilitando uma dosagem de pena de acordo com a participação de cada agente. Juarez Cirino dos Santos e Nilo Batista contribuem com suas visões sobre a teoria adotada no direito penal brasileiro, enfatizando a compatibilidade da teoria do domínio do fato com a legislação em vigor. A distinção entre autoria e participação permite uma individualização da pena, adequando-a à culpabilidade de cada envolvido.
2. Autoria Colateral e o Conceito de Domínio do Fato
O conceito de autoria colateral é apresentado, ocorrendo quando não há acordo de vontades entre os agentes, ou seja, falta a consciência de cooperação na ação comum (segundo Hungria e Fragoso). Nilo Batista destaca que a autoria colateral é rara em crimes dolosos, mas frequente em crimes culposos. A análise aprofunda o conceito de domínio do fato, crucial para determinar a responsabilidade de cada agente, especialmente no que concerne à possibilidade de interferência sobre o “Se” e o “Como” da ação criminosa. O texto introduz o conceito de “domínio da configuração” (Gestaltungsherrschaft), que diferencia a cooperação do co-autor da cooperação do partícipe, demonstrando que a supressão mental da participação do co-autor afetaria a configuração total do evento.
3. Aplicação das Teorias ao Caso da Mula
O estudo aplica as teorias da autoria e participação à figura da “mula” no tráfico de drogas. A análise demonstra que a conduta da “mula”, frequentemente, não se encaixa perfeitamente nas definições tradicionais de autor ou partícipe. A “mula”, geralmente, não possui domínio sobre a droga nem sobre a totalidade do crime, apenas cumprindo uma etapa do transporte. A aplicação do §4º do artigo 33 da Lei 11.343/06, que prevê uma causa de diminuição da pena, é discutida como uma tentativa de abrandar a pena para “mulas”, mas é criticada por se basear em critérios pessoais (primariedade, bons antecedentes) e não na conduta em si, tornando-a inadequada para casos de reincidência. A incoerência do tratamento punitivo, inclusive em julgamentos realizados pelas mesmas turmas do STF e STJ, reforça a necessidade de uma revisão da legislação. O texto defende a criação de um tipo penal específico para o transporte de drogas, diferenciando a “mula” daqueles que ocupam posições de comando nas organizações criminosas, e destaca a necessidade de alterações legislativas e de políticas públicas para um tratamento mais justo e equitativo da figura da “mula”.
IV.Conclusão Necessidade de Alteração Legislativa para o Caso da Mula
A conclusão enfatiza a inadequação do tratamento atual para a figura da “mula” no contexto do tráfico de drogas no Brasil. A pesquisa argumenta que a aplicação do §4º do art. 33, da Lei 11.343/06, é incoerente e insuficiente, sugerindo a necessidade de uma revisão legislativa. A proposta é a criação de um tipo penal específico para o mero transporte de drogas, levando em conta a diferença entre o transportador ocasional e os líderes das organizações criminosas. A pesquisa também menciona a importância de considerar questões de gênero e desigualdade social na análise do problema da “mula”.
1. Inadequação da aplicação do 4º do Art. 33 para a Mula
A conclusão central do estudo aponta para a inadequação da aplicação do §4º do artigo 33 da Lei 11.343/06, que prevê uma redução de pena, ao caso da “mula”. O texto argumenta que essa redução de pena, embora possa ser vista como um benefício, é condicionada a requisitos pessoais do agente (primariedade, bons antecedentes, não integração em organização criminosa, etc.) e não à natureza da conduta em si. Portanto, a aplicação do §4º se mostra incompatível com a conduta da “mula”, pois esta independe da situação pessoal do agente e se concentra na ação de transporte. A ineficácia desse dispositivo legal para solucionar a problemática da “mula” reforça a necessidade de revisão legislativa, uma vez que a aplicação do §4º apenas mascara a ausência de uma definição jurídica clara e precisa para a conduta específica do transporte de drogas.
2. A Necessidade de Alteração Legislativa Criação de Tipo Penal Específico
O estudo defende a criação de um tipo penal específico para a conduta de transporte de drogas, diferenciando o “mero transportador” (a “mula”) dos demais agentes envolvidos no tráfico. A análise demonstra que a jurisprudência, até então, não define claramente a figura da “mula” em nenhuma das modalidades de participação no crime, e a aplicação do §4º do artigo 33, dependente de circunstâncias pessoais, não resolve o problema. O texto sustenta que uma tipificação mais precisa levaria a um tratamento punitivo mais justo e equitativo, considerando a diferença de participação e de poder entre o “mero transportador” e aqueles que ocupam posições de comando nas organizações criminosas. A proposta de alteração legislativa busca, portanto, reconhecer a distinção entre diferentes graus de ofensividade e responsabilidade no crime de tráfico, proporcionando maior clareza e justiça no sistema legal.
3. Implicações para o Sistema Penitenciário e Políticas Públicas
A conclusão estende a discussão para as implicações da falta de tipificação específica da conduta de “mula” no sistema penitenciário e nas políticas públicas. O texto argumenta que legislações que diferenciem de forma realista e justa a figura da “mula”, que não ocupa posições de alto comando, são fundamentais para a reforma do sistema penitenciário e a diminuição do encarceramento em massa. A criação de tipos penais distintos permitiria uma melhor separação entre os graus de ofensividade, especialmente considerando a presença ou ausência de violência. Essa diferenciação no sistema penal brasileiro significaria um avanço em direção a uma política pública com viés de gênero, voltada para o combate a desigualdades e a injustiças sociais, reconhecendo que a legislação atual não consegue diferenciar adequadamente a posição ocupada pelos agentes envolvidos no tráfico de drogas.