
Arbitragem Tributária em Portugal
Informações do documento
instructor | Dra. Serena Cabrita Neto |
Escola | Mestrado Forense, Vertente Civil e Empresarial |
Disciplina | Direito Tributário |
Tipo de documento | Dissertação de Mestrado |
Idioma | Portuguese |
Formato | |
Tamanho | 631.01 KB |
Resumo
I.A Justiça Tributária em Portugal Desafios e Soluções
Este documento analisa o estado da Justiça Tributária em Portugal, focando-se nos desafios impostos pela falta de magistrados judiciais e na crescente complexidade do Direito Tributário. A morosidade na resolução de litígios nos Tribunais Administrativos e Fiscais é um problema significativo, impactando o direito dos contribuintes a uma decisão em prazo razoável, conforme garantido pela Constituição da República Portuguesa (CRP). A complexidade técnica das matérias, envolvendo impostos como IVA, IRS e IRC, exige juízes tributários altamente especializados.
1.1. Escassez de Magistrados e Complexidade do Direito Tributário
A atividade tributária nos tribunais tem sido afetada pela falta de magistrados judiciais, levando a decisões judiciais tardias. Este problema não se resume apenas à carência de juízes, mas também à crescente complexidade das matérias a analisar, que exige conhecimentos especializados em diversas áreas do direito tributário. A complexidade do direito tributário moderno, que abrange desde impostos especiais de consumo (como os impostos sobre produtos petrolíferos) até impostos como IRS, IRC e IVA, exige um alto grau de especialização dos juízes para garantir decisões justas e eficientes. A Constituição da República Portuguesa (CRP), no seu artigo 20º, nº 5, garante o direito a uma decisão judicial em prazo razoável e mediante processo equitativo, princípio corroborado pelo artigo 6º da Declaração Universal dos Direitos do Homem. No entanto, a realidade dos tribunais mostra-se distante deste ideal, com pendências processuais que comprometem a realização atempada da justiça tributária. A carência de juízes e de meios técnicos adequados contribui para decisões tardias e sem o nível de especialização necessário numa área tão complexa como o direito fiscal.
1.2. Medidas Legislativas para Melhoria da Justiça Tributária
O legislador português tem demonstrado preocupação em dotar os Tribunais Administrativos e Fiscais de meios humanos para lidar com as pendências processuais. Em 2002, foi aprovado o novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei nº 13/2002), que prevê a possibilidade de os juízes tributários serem coadjuvados por assessores altamente qualificados (artigo 56º, nº 4). Esta medida, apesar de reconhecidamente importante para o julgamento de questões de elevada complexidade técnica, não foi totalmente implementada devido à ausência de uma carreira de funcionários permanente nestes tribunais. A falta de juízes tributários, um problema reconhecido por Jorge Lopes de Sousa desde 2006, levou à criação de um curso especial de recrutamento de 40 juízes. No entanto, este processo de recrutamento ficou aquém das expectativas devido a diversos fatores, revelando a dificuldade em colmatar a falta de recursos humanos especializados na área da justiça tributária. A complexidade técnica das matérias exige que os juízes tributários sejam apoiados por quadros altamente qualificados, de modo a garantir uma justiça fiscal plena e eficiente. A falta desses recursos e a consequente lentidão na resolução dos casos são desafios importantes para a Justiça Tributária em Portugal.
II.A Arbitragem Tributária como Alternativa
Como resposta à lentidão judicial, a Arbitragem Tributária (Decreto-Lei n.º 10/2011) surge como alternativa, com o objetivo de reforçar a tutela dos direitos dos contribuintes, acelerar a resolução de litígios e reduzir a pendência processual. O regime prevê árbitros com comprovada experiência em Direito Tributário, garantindo decisões com maior especialização técnica em áreas como impostos especiais de consumo. A publicação de decisões arbitrais (RJAT) é uma inovação importante, promovendo transparência e controlo de legalidade. A Lei n.º 3-B/2010 e a posterior Lei n.º 64-B/2011 foram fundamentais para a sua regulamentação.
2.1. Objetivos e Vantagens da Arbitragem Tributária
A arbitragem tributária em Portugal, consagrada pelo Decreto-Lei nº 10/2011 de 20 de janeiro, visa alcançar três objetivos principais: reforçar a tutela eficaz dos direitos e interesses dos sujeitos passivos; imprimir maior celeridade na resolução de litígios entre a Administração Tributária e o sujeito passivo; e reduzir a pendência de processos nos tribunais administrativos e fiscais. Embora o preâmbulo do regime jurídico da arbitragem tributária mencione estes três objetivos, a sua implementação traz vantagens adicionais. A redução da pendência judicial em primeira instância é uma vantagem imediata, mas não a única. A arbitragem tributária é um mecanismo de resolução de litígios que vai além da simples redução do número de processos nos tribunais. A sua existência é justificada por outras vantagens além da celeridade, como a possibilidade de os contribuintes terem seus pedidos analisados por árbitros com competências técnicas específicas relacionadas à matéria em discussão. Essa especialização permite decisões mais adequadas, especialmente em litígios de complexidade jurídica, económica e contabilística extraordinária. A exigência de publicação das decisões arbitrais (artigo 16º, alínea g), do RJAT), inova em relação à falta de obrigatoriedade de publicidade das decisões de primeira instância e de muitos tribunais superiores (exceto o Tribunal Constitucional), contribuindo para a verificação da imparcialidade dos árbitros e o controlo da legalidade das decisões.
2.2. Competência e Qualificação dos Árbitros
O Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT) estabelece que os árbitros devem ser escolhidos entre pessoas de comprovada capacidade técnica (artigo 7º). Mais especificamente, o artigo 7º, nº 2, define que os árbitros devem ser juristas com pelo menos 10 anos de comprovada experiência profissional na área do direito tributário, podendo essa experiência ser comprovada através do exercício de funções públicas, magistratura, advocacia, consultoria, docência no ensino superior, investigação, serviço na Administração Tributária ou trabalhos científicos relevantes na área. Essa exigência de alta qualificação garante que as decisões sejam tomadas por pessoas com profundos conhecimentos técnicos essenciais para a resolução dos litígios, representando uma verdadeira consagração da tutela jurisdicional efetiva. A decisão proferida pelos árbitros, dada a sua expertise no assunto, visa a máxima realização da justiça no caso concreto, o que é uma das principais vantagens da arbitragem tributária comparada à lentidão e falta de especialização em alguns tribunais. A celeridade do processo arbitral, com decisões médias de 4 meses e 22 dias, demonstra a efetividade do sistema em proporcionar uma resolução mais rápida dos litígios.
2.3. Base Constitucional e Reserva de Competência
A Constituição da República Portuguesa (CRP), no seu artigo 209º, nº 2, prevê a existência de tribunais arbitrais, consagrando uma cláusula geral de admissibilidade para a sua criação, sem definir termos específicos ou limites ao seu poder decisório. Jorge Lopes de Sousa e Casalta Nabais defendem a admissibilidade constitucional da criação de tribunais arbitrais, argumentando que o artigo 212º, nº 3, da CRP não atribui exclusivamente aos tribunais administrativos e fiscais a competência para apreciar litígios fiscais. A criação de tribunais arbitrais integra a reserva relativa de competência da Assembleia da República (artigo 165º, nº 1, alínea p) da CRP). A Assembleia da República pode, através de leis de autorização, delegar no Governo a competência para legislar sobre a criação destes tribunais, desde que defina o objeto, sentido e extensão dessa autorização. O Governo fica, assim, condicionado na criação de tribunais arbitrais, evitando a inconstitucionalidade orgânica. A arbitragem tributária, portanto, tem uma base constitucional sólida e sua regulamentação respeita a divisão de competências entre os poderes do Estado.
III.Limites e Desafios da Arbitragem Tributária
Apesar das vantagens da arbitragem, existem limitações. A indisponibilidade dos créditos tributários impõe restrições, sendo a Administração Tributária apenas gestora desses créditos. A Portaria de vinculação da Administração Tributária à arbitragem apresentou-se bastante redutora, limitando o seu potencial. A questão da cumulação de impugnações, inicialmente mais abrangente no RJAT, sofreu restrições, afetando a eficiência do processo. A interpretação do artigo 2.º do RJAT e a sua relação com os artigos 131º a 133º do CPPT geram ainda ambiguidades na prática, especialmente em casos de retenção na fonte e reclamação graciosa.
3.1. Indisponibilidade dos Créditos Tributários como Limite
A arbitragem tributária enfrenta o desafio da indisponibilidade dos créditos tributários. A obrigação fiscal, embora estruturalmente uma obrigação de crédito (Estado como credor e sujeito passivo como devedor), possui especificidades que a distinguem das obrigações privadas. Casalta Nabais caracteriza a obrigação fiscal como legal, pública, exequível, semi-executória, indisponível, irrenunciável, auto-titulada e especialmente garantida. O Supremo Tribunal Administrativo reforça a indisponibilidade do crédito tributário, afirmando que a lei fiscal só permite condições para sua redução ou extinção com respeito aos princípios da igualdade e legalidade tributárias. Essa indisponibilidade impõe-se à Administração Tributária e a todos os particulares, decorrendo diretamente dos princípios constitucionais da legalidade e igualdade tributárias. Apesar disso, o ato de liquidação possui natureza declarativa, o que não é incompatível com o juízo interpretativo da existência do crédito tributário exercido pela decisão arbitral. Carlos Lobo argumenta que a indisponibilidade do crédito fiscal se aplica apenas quando concretizado, havendo disponibilidade vinculada ao melhor resultado interpretativo enquanto não concretizado. A decisão arbitral, portanto, atua como um juízo interpretativo, sem a mesma amplitude de liberdade que o representante da Fazenda Pública dispõe ao recorrer de uma decisão jurisdicional desfavorável ao Estado.
3.2. Restrições na Vinculação da Administração Tributária e Âmbito Reduzido da Arbitragem
A vinculação da Administração Tributária à arbitragem tributária, inicialmente concebida para abranger uma ampla gama de matérias tributárias, sofreu restrições significativas. O conceito de tributo, que abarca toda a atividade tributária do Estado, poderia permitir aos tribunais arbitrais julgar um amplo conjunto de matérias, contribuindo significativamente para a realização da justiça tributária. No entanto, a Portaria de vinculação da Administração Tributária resultou num regime redutor, subaproveitando o potencial da arbitragem. A versão inicial do RJAT (artigo 2º, nº 1, alínea c) previa competência dos tribunais arbitrais para apreciar qualquer questão de facto e de direito relativa ao projeto de decisão de liquidação, constituindo uma exceção ao princípio da impugnação unitária do CPPT. Esta alínea foi revogada pelo artigo 161º da Lei nº 64-B/2011, diminuindo o alcance da arbitragem. A falta de vinculação de entidades com autonomia jurídica e administrativa em relação ao Estado, que tenham legitimidade para cobrança de taxas, representa outra limitação. Uma vinculação genérica para essas entidades seria importante, pois as taxas cobradas por elas frequentemente apresentam valores elevados, e a arbitragem poderia garantir maior certeza jurídica quanto à legalidade de sua cobrança num prazo razoável. Decisões arbitrais, como a do processo nº 48/2012-T, ilustram conflitos surgidos devido a essas limitações.
3.3. Cumulação de Impugnações e Apensação de Processos
A arbitragem tributária apresenta um critério divergente para a cumulação de impugnações em comparação com o processo judicial tributário. O artigo 3º, nº 1, do RJAT permite a cumulação de pedidos, mesmo relativos a atos diferentes, quando a procedência depende da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito, independentemente da identidade do tributo. Esta solução é mais abrangente que a comum, exigindo apenas identidade de factos e interpretação de princípios ou regras de direito. No entanto, a decisão do tribunal arbitral no processo nº 59/2012-T esclarece que a cumulação de pedidos só se aplica se os pedidos cumulados já passaram pelo crivo da competência do tribunal arbitral. A apensação do processo arbitral ao processo judicial tributário não é aconselhada, devido à natureza célere do processo arbitral e para evitar retrocessos no princípio da tutela jurisdicional efetiva. O artigo 3º, nº 2, do RJAT permite deduzir pedidos de impugnação judicial e de pronúncia arbitral relativamente ao mesmo ato tributário, permitindo que ambos os processos corram paralelamente. Rui Ribeiro Pereira sugere a possibilidade de apensação do processo judicial ao arbitral, como forma de transição, mas fora das situações previstas no artigo 30º do CPPT, visando economia de meios e decisão mais célere para o contribuinte.
IV.Recorribilidade das Decisões Arbitrais
O regime de recorribilidade das decisões arbitrais é limitado, priorizando o recurso para o Tribunal Constitucional apenas em casos de inconstitucionalidade. A possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo (STA) e o Tribunal Central Administrativo (TCA) visa garantir a proteção dos princípios basilares do direito contra decisões arbitrais com vícios graves, que poderiam violar princípios como a igualdade e o acesso à tutela jurisdicional efetiva. O artigo 124º da Lei n.º 3-B/2010 define as bases do recurso.
4.1. Regime de Recorribilidade Limitada das Decisões Arbitrais
As decisões proferidas em sede de arbitragem tributária estão sujeitas a um regime de recorribilidade limitada. A Lei nº 3-B/2010, de 28 de abril, artigo 124º, estabeleceu como diretriz a irrecorribilidade da sentença arbitral, com exceção de recurso para o Tribunal Constitucional apenas nos casos em que a sentença arbitral recuse a aplicação de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, ou aplique norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada. Este regime é alinhado com os artigos 204º e 280º, nº 1, alíneas a) e b), da CRP, que prevêem recurso para o Tribunal Constitucional em casos de recusa de aplicação de norma por inconstitucionalidade ou aplicação de norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada no processo. O RJAT, no entanto, adotou um regime mais abrangente, prevendo recurso para o Supremo Tribunal Administrativo (STA) quanto ao mérito da decisão e impugnação para o Tribunal Central Administrativo (TCA). Este regime mais amplo visa salvaguardar princípios basilares do direito, evitando decisões arbitrais com vícios graves. A irrecorribilidade das decisões arbitrais, embora regra geral, não pode ser absoluta para garantir a proteção dos direitos e interesses dos cidadãos. O sistema permite a impugnação em casos de ilegalidade clara na decisão, evitando decisões materialmente injustas.
4.2. Recurso para o Tribunal Constitucional e Outros Recursos
O recurso para o Tribunal Constitucional decorre do sistema de fiscalização da constitucionalidade em Portugal. O artigo 204º da CRP determina que os tribunais não podem aplicar normas inconstitucionais. Os tribunais arbitrais, considerados tribunais na acepção do artigo 209º, nº 2, da CRP, também devem respeitar este princípio. Este primeiro grau de fiscalização da constitucionalidade é uma fiscalização sucessiva e concreta das normas aplicadas. A violação de princípios constitucionais, como a igualdade (artigo 13º da CRP) e o acesso à tutela jurisdicional efetiva (artigo 20º da CRP), pode levar à impugnação da decisão arbitral. Miguel Teixeira de Sousa refere a importância do contraditório em processos civis, e essa importância se aplica igualmente ao processo arbitral tributário. O regime nos artigos 27º e 28º do RJAT prevê um mecanismo de revisão da decisão arbitral baseado em nulidade, garantindo a tutela jurisdicional efetiva. O artigo 25º, nº 3, do RJAT remete para o regime do recurso para uniformização de jurisprudência (artigo 152º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos), visando uniformizar a jurisprudência administrativa e garantir igualdade de tratamento em casos semelhantes, como apontado por José Carlos Vieira de Andrade. O CPPT também prevê recurso direto para o STA em questões de direito ou em oposição de acórdãos sobre a mesma matéria, e recurso para o STA de decisões de primeira instância em oposição a decisões de tribunais superiores (artigo 280º, nº 5, CPPT). Este mecanismo visa a igualdade de tratamento na aplicação do direito, independentemente da alçada do tribunal.