Aspetos fiscais decorrentes dos acordos celebrados pela União Europeia : uma análise crítica

Aspectos Fiscais dos Acordos da UE

Informações do documento

Autor

Tiago Luís Ferreira da Silva

instructor João Félix Pinto Nogueira, Professor Doutor
Escola

Universidade Católica Portuguesa

Curso Direito Fiscal
Tipo de documento Dissertação (Mestrado)
city Porto
Idioma Portuguese
Formato | PDF
Tamanho 0.91 MB

Resumo

I.Objetivos da Tese e Delimitação do Objeto de Estudo

Esta tese analisa criticamente o impacto dos acordos celebrados entre a UE e Estados terceiros no domínio da fiscalidade direta. O foco principal é o estudo da compatibilidade entre as normas tributárias internas dos Estados-Membros (EMs) e as disposições destes acordos, particularmente aquelas que estendem (explícita ou implicitamente) as liberdades fundamentais da União Europeia, como a livre circulação de capitais (LCCP), a liberdade de estabelecimento (LE) e a liberdade de prestação de serviços (LPS), consagradas no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE). A metodologia envolve uma análise direta dos acordos, uma vez que estes são acessíveis online. A pesquisa também investiga eventuais problemas de compatibilidade e propõe soluções.

1. Objetivos da Tese

A tese tem como objetivo principal analisar criticamente o impacto dos acordos entre a União Europeia (UE) e Estados terceiros na fiscalidade direta. O estudo visa uma compreensão abrangente desses acordos, identificando seus traços estruturais e avaliando a existência de potenciais problemas de compatibilidade entre as normas tributárias internas dos Estados-Membros (EMs) e as normas contidas nos acordos. A pesquisa irá propor soluções para superar eventuais incompatibilidades encontradas. A complexidade da questão exige um conhecimento profundo do ordenamento jurídico nacional, do direito da UE e do direito convencional aplicável, dado que a coexistência de normas nacionais, europeias e internacionais frequentemente gera dúvidas sobre validade, interpretação, aplicação e âmbito (subjetivo, objetivo, temporal e geográfico) das normas.

2. Delimitação do Objeto de Estudo

O estudo se concentra na problemática específica do impacto na fiscalidade direta dos acordos celebrados pela UE (como entidade jurídica distinta dos EMs) com países terceiros. A análise se limita às disposições dos acordos que promovem uma extensão (explícita ou implícita) das liberdades fundamentais (LF) consagradas no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE). A priorização dessas disposições se justifica pelo maior potencial de gerar problemas de compatibilidade com as normas tributárias internas dos EMs. A metodologia adotada é a revisão primária dos acordos, acessíveis pela internet, em detrimento de fontes secundárias, uma vez que essa abordagem direta não havia sido realizada anteriormente na doutrina nacional, sendo rara também na literatura estrangeira especializada em tributação internacional. A escolha pela análise direta dos acordos justifica-se pela ausência de trabalhos similares na doutrina nacional e pela escassa abordagem na doutrina estrangeira, tornando este trabalho pioneiro na área.

II.Classificação dos Acordos e Análise de suas Disposições

Os acordos entre a UE e países terceiros são classificados em três tipos principais: acordos de associação, acordos de parceria e cooperação, e acordos de cooperação. Embora muitos acordos tenham natureza programática, alguns contêm normas semelhantes às liberdades fundamentais da UE, especialmente no que diz respeito à livre circulação de capitais. A tese concentra-se nestes últimos, examinando como cláusulas relativas ao investimento direto, liquidação e repatriação de lucros impactam a fiscalidade direta. São mencionados exemplos de acordos com países específicos como Bulgária, Roménia, Croácia, Albânia, Arménia, Moldávia e Ucrânia, bem como o Acordo de Cotonou (com países ACP) e acordos com a África do Sul, Chile, México e Turquia. A análise inclui a comparação entre as normas dos acordos e o artigo 63º do TFUE.

1. Classificação dos Acordos

A classificação dos acordos entre a UE e países terceiros varia de acordo com o critério utilizado. Essencialmente, os acordos perseguem três objetivos: associação, parceria e cooperação. Essa classificação considera os interesses e realidades econômicas das partes envolvidas, os objetivos pretendidos e as obrigações de cada uma. É importante ressaltar que a maioria dos acordos não se enquadra perfeitamente em um único modelo, contendo cláusulas típicas de mais de um, refletindo as idiossincrasias da negociação. Embora muitos acordos possam parecer meramente programáticos, um número significativo contém normas com características similares às liberdades fundamentais (LF) da UE, sendo essas disposições o foco principal desta pesquisa. Em casos excepcionais, serão abordados acordos que, embora não abordem diretamente as LF, contenham normas funcionalmente próximas, como as relativas à liberalização e promoção do investimento. A análise considera diversos acordos, incluindo os firmados com países da antiga União Soviética após seu colapso, buscando identificar padrões e semelhanças entre as suas disposições.

2. Análise das Disposições dos Acordos

A análise dos acordos revela que, apesar de sua diversidade, muitos deles compartilham objetivos comuns, como o estreitamento de laços econômicos com a UE, a criação de relações duradouras baseadas em interesses mútuos e reciprocidade, e o reforço das liberdades políticas e econômicas. Exemplos como o Acordo de Associação entre a CE e a Bulgária (art. 45º), o Acordo entre a CE e a Roménia (art. 38º), e o Acordo de Associação entre a CE e a Croácia (Capítulo IV, art. 60º), ilustram a preocupação com a livre circulação de capitais e investimentos, liquidação e repatriação de lucros e tratamento não discriminatório para empresas estabelecidas em países contratantes. Os acordos de parceria e cooperação, celebrados a partir do início da década de 1990 com países da antiga União Soviética (como Armênia, Azerbaijão, Geórgia, Cazaquistão, Quirguistão, Moldávia, Rússia, Tajiquistão, Ucrânia e Uzbequistão), demonstram uma forte componente política de apoio à consolidação democrática e à transição para uma economia de mercado, visando promover o comércio e investimentos com a UE. A análise foca em como essas normas, muitas vezes similares ao art. 63º do TFUE, impactam a fiscalidade direta, particularmente em relação à livre circulação de capitais. O estudo inclui também uma análise de acordos específicos, citando artigos relevantes de cada um (como o Acordo de Associação CE-África do Sul, art. 33º, os acordos com Chile e México) para ilustrar os temas abordados. A análise dos acordos demonstra a complexidade das relações entre a UE e os Estados Terceiros, exigindo uma abordagem cuidadosa e sistemática.

III.A Liberdade de Circulação de Capitais e sua Aplicação a Estados Terceiros

A LCCP é um elemento crucial do mercado interno da UE. A tese discute a aplicabilidade desta liberdade nas relações com Estados terceiros, considerando as cláusulas de salvaguarda e exclusão previstas no artigo 64º e 65º do TFUE, que permitem restrições em determinadas circunstâncias, nomeadamente para prevenir a fraude e evasão fiscal. A jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), especialmente a abordagem em casos como Schumacker, é analisada para avaliar a proporcionalidade das medidas nacionais restritivas. A existência de convenções sobre a troca de informações fiscais (CDT) entre a UE e os Estados terceiros é crucial para a compatibilidade das normas.

1. A Liberdade de Circulação de Capitais LCCP como Pilar do Mercado Interno

A liberdade de circulação de capitais (LCCP) é apresentada como um elemento fundamental do mercado interno da União Europeia. A sua proibição de restrições aos movimentos de capitais entre os Estados-Membros (EMs) e entre EMs e países terceiros é destacada. A noção de movimento de capital abrange diversas transações legais necessárias para a transferência de ativos, incluindo investimentos de carteira, investimento direto, estabelecimento de filiais e sucursais, e transferências relativas a contratos de seguros. A distinção entre legislação nacional aplicável à LCCP e à liberdade de estabelecimento (LE) é crucial e passa pelo exame do objeto da legislação nacional: se a legislação se aplica apenas a casos de influência certa e definitiva de uma sociedade sobre outra, está subsumida à LE; caso contrário, ao âmbito da LCCP. A simultânea subsunção numa e noutra não é suficiente para invocar a LCCP em situações que envolvam países terceiros.

2. Cláusulas de Salvaguarda e Exclusão Limitações à LCCP em Relações com Terceiros

O texto discute as cláusulas de salvaguarda e exclusão que limitam a aplicação da LCCP em relação a países terceiros. A cláusula de salvaguarda do artigo 64º do TFUE permite a manutenção de restrições em vigor até 31 de dezembro de 1993, relativas à circulação de capitais com origem ou destino em países terceiros que envolvam investimento direto. Essa cláusula funciona como um mecanismo de restrição unilateral à LCCP, concedendo certo controle aos EMs nas relações com países terceiros, mesmo com alterações posteriores desde que a substância da norma seja idêntica à anterior. Já o artigo 65º do TFUE assegura que a LCCP não afeta o direito dos EMs de aplicar disposições de direito fiscal que estabeleçam distinções entre contribuintes em situações não idênticas em termos de residência ou investimento de capital, bem como medidas para impedir infrações às leis e regulamentos (incluindo fiscais e de supervisão prudencial), ou medidas justificadas por razões de ordem pública ou segurança pública. A interpretação do TJUE sobre a proporcionalidade dessas medidas é crucial, sendo este bastante restritivo, exigindo a demonstração de abuso e ausência de realidade econômica para justificar restrições.

3. Extensão da LCCP e outras Liberdades Fundamentais a Estados Terceiros via Acordos

A discussão se estende à possibilidade de extensão da LCCP e de outras liberdades fundamentais (LE, LPS) a Estados terceiros por meio de acordos internacionais, considerando a jurisprudência do TJUE. A existência de acordos posteriores ao TFUE, contendo normas idênticas às liberdades fundamentais, claras, precisas e sem necessidade de medidas executórias adicionais, combinada com mecanismos de troca de informações fiscais (Convenções sobre Troca de Informações Fiscais - CDTs), indica que essas liberdades podem ser estendidas por via convencional, superando a limitação do TFUE que restringe sua aplicabilidade às relações entre os EMs. A aplicação da cláusula de anterioridade do TFUE em relação à LCCP é analisada à luz da Convenção de Viena, que considera as disposições do TFUE apenas aplicáveis na medida em que não tenham sido substituídas pelas disposições dos acordos. A análise foca na prevalência das normas dos acordos sobre as do TFUE em casos concretos, particularmente em relação à livre circulação de capitais.

IV.Análise da Legislação Portuguesa e Propostas de Alteração

A tese examina a legislação portuguesa (Código do IRC, Código do IRS, Estatuto dos Benefícios Fiscais - EBF), identificando normas que podem ser incompatíveis com a LCCP, LE e LPS nos acordos com Estados terceiros. São analisados artigos específicos destes códigos, apontando para a necessidade de alterações legislativas para garantir a coerência com as obrigações internacionais assumidas pela UE em matéria de livre circulação de capitais, livre estabelecimento e livre prestação de serviços. A proposta é estender os benefícios fiscais a entidades residentes em Estados terceiros com os quais existam mecanismos adequados de troca de informações fiscais ou cooperação administrativa, garantindo a eficácia dos controlos fiscais e a prevenção da fraude. São mencionadas propostas de alteração em artigos específicos dos códigos tributários portugueses.

1. Incompatibilidades na Legislação Tributária Portuguesa

A análise da legislação tributária portuguesa revela diversas normas que podem ser incompatíveis com os princípios da livre circulação de capitais (LCCP), liberdade de estabelecimento (LE) e liberdade de prestação de serviços (LPS), consagradas nos acordos entre a UE e Estados terceiros. O estudo aponta para a existência de tratamento menos favorável para entidades não residentes em Portugal, comparativamente às entidades residentes em Estados-Membros da UE ou no Espaço Econômico Europeu (EEE). São identificadas várias incompatibilidades, por exemplo, em relação à isenção de juros e royalties (art. 14º, nº 12 do CIRC), que beneficia apenas entidades com sede na UE, excluindo Estados terceiros. A isenção prevista no artigo 51º do CIRC também demonstra essa assimetria. O artigo 66º, nº 12 do CIRC, referente à não imputação de rendimentos de entidades não residentes sujeitas a regimes fiscais privilegiados, apresenta limitações similares, aplicando-se apenas a entidades da UE e do EEE. Similarmente, o artigo 38º, nº 1 a) do CIRS, sobre a entrada de patrimônio para capital social, restringe o benefício a entidades sediadas na UE ou EEE, e o artigo 72º, nº 9 do CIRS, sobre a opção de tributação para não residentes, também exclui os Estados terceiros. O artigo 27º, nº 2 al. a) do EBF, sobre isenção de mais-valias, impõe requisitos como a celebração de uma Convenção sobre a Troca de Informações Fiscais (CDT) e uma taxa mínima de IRC no país de origem, criando obstáculos para Estados terceiros com acordos que incluem a LCCP.

2. Propostas de Alteração Legislativa para a Harmonização com os Acordos Internacionais

Para solucionar as incompatibilidades identificadas, a tese propõe alterações à legislação tributária portuguesa, com o objetivo de harmonizá-la com as obrigações internacionais assumidas pela UE através dos acordos com os Estados terceiros. As propostas visam, principalmente, estender os benefícios fiscais a entidades não residentes em Portugal, desde que localizadas em Estados terceiros com mecanismos adequados de troca de informações fiscais ou cooperação administrativa. Sugere-se a alteração do artigo 14º, nº 12 do CIRC para incluir Estados terceiros, eliminando a discriminação em relação a juros e royalties. Similarmente, recomenda-se a extensão da isenção do artigo 51º do CIRC e a inclusão de Estados terceiros no artigo 66º, nº 12, considerando a existência de mecanismos de cooperação administrativa. Alterações também são propostas para os artigos 38º, nº 1 a) e 72º, nº 9 do CIRS, visando incluir Estados terceiros em situações de entrada de patrimônio e opção de tributação. Em relação ao artigo 27º, nº 2 al. a) do EBF, propõe-se a eliminação do requisito da CDT, substituindo-o por 'mecanismo de troca de informação ou cooperação administrativa adequada no domínio da fiscalidade', além da remoção do requisito da taxa mínima de IRC, para garantir a compatibilidade com acordos que incluam normas relativas à LCCP. A coerência é o foco, buscando a uniformidade no tratamento de entidades residentes na UE e em Estados terceiros com mecanismos de troca de informações fiscais.