Calma é apenas um pouco tarde: Resistência na poesia portuguesa contemporânea

Poesia Portuguesa Pós-Moderna

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instructor/editor Professora Doutora Rosa Maria Martelo
subject/major Literatura Portuguesa
Tipo de documento Dissertação
Idioma Portuguese
Formato | PDF
Tamanho 1.25 MB

Resumo

I.A Resistência na Poesia Portuguesa Contemporânea Um Olhar sobre a Pós Modernidade

Este trabalho analisa a poesia portuguesa contemporânea através do prisma da resistência, explorando como ela se posiciona frente às dinâmicas da pós-modernidade. O estudo foca a relação entre a poesia e a crítica social, analisando como poetas portugueses contemporâneos abordam temas como o tempo acelerado, a perda de identidade e a manipulação discursiva. Obras e autores relevantes, como Al Berto, José Miguel Silva, e Alberto Pimenta, são examinados para ilustrar estratégias de resistência na forma e no conteúdo poético, confrontando a indústria cultural e o senso comum.

1. A Balsa da Medusa como Alegoria da Sociedade Pós Moderna

A obra inicia-se utilizando a narrativa da Balsa da Medusa, um episódio histórico francês descrito por Anselm Jappe em Sobre a Balsa da Medusa – Ensaios sobre a decomposição do capitalismo (2012). Jappe vê na tragédia da balsa uma alegoria da sociedade contemporânea, destacando a incompetência e presunção da liderança que levou ao naufrágio e à situação de abandono dos passageiros. A imagem da balsa à deriva, entre a morte e a remota esperança de salvação, reflete a condição de instabilidade e angústia inerente à pós-modernidade, impactando até mesmo a condição do poeta. A pintura de Théodore Géricault, A Balsa da Medusa, é utilizada como representação visual desse estado de espírito, um momento de sofrimento e desespero, mas também de esperança na possibilidade de um salvamento. Esta imagem da deriva serve como metáfora central para analisar a poesia portuguesa contemporânea no contexto da pós-modernidade.

2. Definindo a Pós Modernidade e a Poesia de Resistência

O texto discute a pós-modernidade, utilizando a definição de Anthony Giddens, que a caracteriza pela incerteza epistemológica e pela ausência de teleologia histórica. A partir dessa compreensão da pós-modernidade, a discussão se volta para a poesia de resistência, questionando quais lógicas sociais e políticas a poesia contemporânea enfrenta. A análise se apoia em pensadores de outras áreas, como a filosofia e a sociologia, para compreender a crise dos estudos literários e o surgimento dos estudos culturais, que promovem a transdisciplinaridade. Maria Irene Ramalho e António Sousa Ribeiro são citados sobre a importância da abertura dos estudos literários a outras áreas do conhecimento, sem a abolição das disciplinas, mas sim, reforçando a comunicação entre elas. A questão central é: como a poesia resiste e se posiciona criticamente em relação às estruturas de poder e às lógicas pós-modernas? O conceito de resistência é analisado em diferentes dicionários, mostrando sua amplitude de significado.

3. Criar é Resistir A Resistência Artística segundo Deleuze e a Poesia Portuguesa

O pensamento de Gilles Deleuze, extraído de entrevistas em L’Abécedaire, é fundamental para compreender a resistência artística. Deleuze afirma que criar é resistir, sendo a criação um ato de contrapoder que se opõe ao “arrasto e aos desejos da opinião corrente”. A base dessa criação está num sentimento complexo de “uma certa vergonha de ser um Homem”, em face das atrocidades humanas. A poesia, portanto, emerge como um ato de resistência, gerando outras realidades possíveis em contraponto à realidade angustiante da pós-modernidade. A obra de Primo Levi, Se isto é um Homem, serve como exemplo dessa resistência na arte, uma resposta às atrocidades nazistas. Esta análise da resistência na arte serve de base para o entendimento da resistência na poesia portuguesa contemporânea, que frequentemente questiona as lógicas sociais e políticas do seu contexto.

4. Poesia de Intervenção vs. Poesia de Resistência Autonomia e Compromisso

O texto diferencia poesia de intervenção e poesia de resistência, sendo a primeira mais diretamente comprometida com uma temática política explícita, enquanto a segunda abarca uma gama mais ampla de formas de resistência. A discussão sobre compromisso versus autonomia na arte é central, citando Theodor Adorno, que defende que a arte já possui uma posição política independente da temática. Movimentos como a Poesia 61 e a Po-Ex (poesia experimental) são analisados como formas de resistência à indústria cultural e a uma visão utilitarista da poesia. A resistência através da forma e da experimentação linguística é destacada, como uma forma de escapar à censura e criar espaços de liberdade expressiva. A antologia Poetas Sem Qualidades, lançada em 2002 pela editora Averno, e seus autores (Ana Paula Inácio, Carlos Alberto Machado, Carlos Luís Bessa, João Miguel Queirós, José Miguel Silva, Nuno Moura, Rui Pires Cabral, Vindeirinho) ilustram esse novo paradigma poético na literatura portuguesa.

II.Tempo e Velocidade na Poesia Pós Moderna

A análise investiga a temática do tempo e da velocidade na poesia portuguesa contemporânea, particularmente a aceleração da vida moderna e suas consequências para o indivíduo. Poetas como Rui Miguel Ribeiro ilustram a experiência do tempo acelerado, enquanto outros, como Manuel de Freitas, propõem a contemplação como forma de resistência a essa voracidade temporal. A discussão abrange novas estratégias editoriais, mais artesanais, como forma de desacelerar o processo de produção e consumo da poesia.

1. A Aceleração do Tempo na Poesia Contemporânea

O texto aborda a percepção do tempo como acelerado na poesia pós-moderna, refletindo a experiência humana na modernidade. A frase de Benjamin Franklin, “time is money”, e a crescente velocidade da vida moderna, impulsionada pela revolução industrial e pelo neoliberalismo, são apresentadas como contexto para essa percepção. A obra de Rui Miguel Ribeiro, escrita durante sua internação no Instituto Português de Oncologia de Lisboa em 2009, exemplifica essa questão com a pergunta: “No vaivém das horas/ como posso materializar o tempo,/ definir a sua dimensão,/ o peso e a marca que deixa/ por estes dias?”. Essa busca pela materialização do tempo e a sua dimensão acelerada contrastam com a lentidão do tempo no campo, evidenciando a diferença entre a vida urbana e rural. O conceito de fast-food, que domina o mercado, ilustra a valorização da velocidade em detrimento da qualidade e da pausa, levando a transtornos como depressão e ansiedade, segundo Byung-Chul Han. A poesia, nesse contexto, busca ou refletir essa velocidade, ou propor a desaceleração como resistência.

2. Desaceleração e Contemplação como Atos de Resistência

Em contraponto à velocidade exacerbada da vida moderna, a poesia contemporânea busca a desaceleração e a contemplação como formas de resistência. A obra de Manuel de Freitas, que começa a ser editada nos anos 90, enfatiza a pausa, a preguiça e o direito à contemplação como resposta à aceleração do tempo. Apesar do reconhecimento da dificuldade em resistir ao roubo de “tempo, memória, mundo”, Freitas se reserva o direito de parar, de permanecer no estado de quietude. Esse estado é apresentado em sua obra como um estado permanente e prolongado, intimamente ligado a um sentimento disfórico e melancólico. A “taberna da Dona Benilde” surge como um refúgio, metáfora de salvação ou perdição, nesse mundo acelerado sem sentido. A desaceleração e a contemplação são, portanto, apresentadas como uma resistência à velocidade opressiva da pós-modernidade, buscando refúgio na pausa e na reflexão, em oposição à corrida incessante e ao tempo como mercadoria.

3. Novas Estratégias Editoriais Poesia Artesanal e a Lentidão

A análise explora novas estratégias de produção editorial, mais artesanais e lentas, como forma de resistir à velocidade de produção e consumo impostas pela indústria cultural. São mencionados exemplos de edições artesanais, com tiragens limitadas (30 a 50 exemplares, chegando a 100), livros cosidos à mão, com diferentes formas, cores e materiais (chumbo, madeira, cartão, papel), ilustrando uma busca por uma produção mais lenta e intencional. A chancela Pianola é citada como exemplo, com edições artesanais de obras como Autocataclismos, de Alberto Pimenta, e Biblioteca dos Rapazes, de Rui Pires Cabral. Essas edições, muitas vezes com ilustrações, promovem um diálogo entre poesia e artes visuais, buscando uma intermedialidade que resgata a poesia da sua potencial extinção através do consumo rápido e massivo. A lentidão do processo artesanal contrapõe-se diretamente à velocidade da pós-modernidade no campo da literatura.

III.Identidade e Subjetivação na Poesia de Resistência

Esta seção examina a construção da identidade e o processo de subjetivação na poesia portuguesa contemporânea como atos de resistência à uniformização. A discussão explora a ambivalência entre a biografia do poeta e o sujeito poético, utilizando o conceito de biografema (Roland Barthes) para analisar a relação entre experiência pessoal e construção poética. Autores como Al Berto e Ana Luísa Amaral são analisados em relação à sua abordagem da identidade, incluindo a temática do homoerotismo como forma de desafiar a heteronormatividade. A poesia como espaço de afirmação de identidades minoritárias e de luta contra a massificação é um foco central.

1. Identidade e Individualidade na Poesia de Resistência

Esta seção analisa como a poesia contemporânea portuguesa aborda a questão da identidade individual numa sociedade marcada pela uniformização, promovendo a individualidade como ato de resistência. A análise critica a falsa individualização promovida pela indústria cultural, conforme Horkheimer e Adorno, que incutindo uma noção superficial de individualidade, leva os indivíduos a seguirem cegamente papéis sociais predefinidos. Em contraposição, a poesia surge como espaço de busca por identidades alternativas, resistindo a essa padronização. O conceito de cultura, segundo Terry Eagleton, é explorado para entender como hábitos de linguagem, folclore e valores compartilhados constroem uma identidade coletiva, que é constantemente ameaçada pelas forças da globalização e do capitalismo. A discussão sobre a resistência à uniformização também considera a necessidade de diferenciar as utilizações benéficas do conceito de universalidade daquelas que são prejudiciais. A poesia, nessa perspectiva, busca a recuperação de uma ideia de identidade autêntica, através da negociação de dualismos e não da adoção de posturas rígidas.

2. O Biografema e a Relação entre Poesia e Biografia

A relação entre poesia e biografia é explorada através do conceito de biografema, proposto por Roland Barthes. Ao contrário de uma biografia explícita, o biografema se baseia em fragmentos, detalhes e sugestões que criam ambiguidade e deixam margem para diversas interpretações. Essa ambiguidade cria um jogo entre a ficção do sujeito poético e o reconhecimento de elementos biográficos na obra, gerando estranhamento e, ao mesmo tempo, uma relação de proximidade com o leitor. A obra de José Miguel Silva, com referências a uma musa (“Não admira/ que muitas vezes a traia/ com a Helena, com o bourbon/ dos amigos, com o voo violeta/ do jacarandá no largo do Viriato”), e a de Ana Luísa Amaral, que afirma que “nem tudo o que está nos poemas é verdade”, ilustram essa complexa relação entre poesia e biografia. O conceito de indecidibilidade (Derrida) se mostra relevante para compreender esta estratégia de construção da identidade poética, um espaço de negociação entre ficção e realidade, entre o sujeito poético e o autor empírico. Esse jogo ambivalente constitui-se como uma forma de resistência à padronização da identidade.

3. Homoerotismo e Resistência à Heteronormatividade

A poesia contemporânea é analisada em relação à sua capacidade de desafiar estruturas de poder, particularmente a heteronormatividade. A obra de Al Berto é destacada como um exemplo de naturalização de vivências homoeróticas, através de uma representação crua e física dos relacionamentos. A comparação com poetas do início do século XX, como António Botto e Raul Leal, cujas obras foram censuradas, destaca a mudança no contexto pós-1974, mas também a persistência de opressões relacionadas à identidade de gênero e sexual. Al Berto contribuiu, por meio da exposição crua de relacionamentos homoeróticos, para a desconstrução de normas sociais moralistas e o reconhecimento de vivências que, historicamente, foram reprimidas. A temática homoerótica na poesia de Al Berto representa, assim, um ato de resistência à heteronormatividade e à imposição de padrões de identidade.

4. Processos de Subjetivação e a Desconstrução da Autoridade Autoral

A seção analisa os processos de subjetivação na poesia, particularmente a desconstrução da figura do autor e a instabilidade das figurações autorais. A afirmação de Fernando Guerreiro, em Teoria do Fantasma, de que “o poema […] produz o seu outro, o autor”, é central para a discussão. A citação de Rimbaud, “Je est un autre”, ilustra o processo de dessubjetivação operado na poesia. A obra de Herberto Helder é analisada como um exemplo dessa dessubjetivação, com uso de estratégias como a rara utilização da primeira pessoa e a desregulação da linguagem. No entanto, a análise destaca a ambivalência e a coexistência de diferentes contratos na poesia contemporânea: a ficção do sujeito lírico e o contrato semi-biográfico, ligado ao biografema de Barthes. Esta coexistência entre ficção e elementos biográficos gera indecidibilidade e estranhamento, constituindo-se também como um ato de resistência às expectativas de uma identidade fixa e estável.

IV.Discurso e Manipulação A Poesia como Contraponto

A análise investiga a manipulação do discurso como ferramenta de dominação social e como a poesia se posiciona contra essa manipulação. O conceito de senso comum (Gramsci) é utilizado para entender a aceitação passiva da realidade imposta pela mídia e pela indústria cultural. Alberto Pimenta é destacado como exemplo de poeta que utiliza o sarcasmo, a metalinguagem e a repetição para subverter o discurso dominante, expondo as suas falácias e mecanismos de controle. A discussão inclui a análise de estratégias de resistência discursiva em poetas como Franco Alexandre, utilizando recursos estilísticos como a subasserção e a palinódia para desconstruir a narrativa hegemônica.