
Narrativas de Viagem: Análise de 'Um Estranho em Goa'
Informações do documento
Autor | Autor não especificado no excerto fornecido |
instructor | Professora Doutora Maria De Fátima Outeirinho |
Escola | Faculdade de Letras da Universidade do Porto |
Curso | Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes – Literatura Portuguesa |
Local | Porto |
Tipo de documento | Tese |
Idioma | Portuguese |
Formato | |
Tamanho | 726.31 KB |
Resumo
I.A Autoficção e o Género Viático em Um Estranho em Goa
Esta análise acadêmica examina Um Estranho em Goa, de José Eduardo Agualusa, explorando sua classificação dentro do gênero da literatura de viagens e sua relação com a autoficção. O estudo investiga como Agualusa utiliza a viagem a Goa como um pretexto para uma narrativa que transcende a mera descrição de lugares, explorando temas como a identidade, o colonialismo português na Índia, e a hibrididade cultural. A obra dialoga com autores canônicos como Luís Vaz de Camões e Bruce Chatwin, cujas obras servem como pontos de referência para a discussão da representação do Oriente e da experiência colonial. A análise aprofunda a ambivalência do gênero viático contemporâneo, questionando sua originalidade num mundo globalizado, e como Um Estranho em Goa se posiciona em relação a esta problemática.
1. A Evolução do Gênero Viático e a Influência da Globalização
O texto inicia abordando a história das narrativas de viagem, destacando-as como o instrumento privilegiado para o relato de expedições e experiências exóticas, muitas vezes a única forma de contato do leitor com o desconhecido. No entanto, a análise aponta para uma mudança significativa na contemporaneidade: o advento dos meios de comunicação e transporte tornou o conhecimento de outros lugares consideravelmente mais fácil, ameaçando a originalidade do gênero. A globalização, que aproxima culturas descritas por Santos (2005: 54) como "um processo social constituído sobre a intersecção entre o universal e o particular", torna crucial a questão levantada por Patrick e Huggan sobre o futuro do gênero viático. Vítor Aguiar e Silva (2000: 400, 401) relaciona essa inconstância à "metalinguagem do sistema literário", que impõe sua ideologia aos códigos vigentes, permitindo ou proibindo a mistura de gêneros, como exemplificado pelo Barroco, Romantismo e Simbolismo. A problemática dos gêneros é, portanto, indissociável dos estilos de cada época. A análise prepara o terreno para a discussão de como Um Estranho em Goa se insere neste contexto evolutivo e desafiador para a literatura de viagens.
2. Autoficção Conceito e Aplicação em Narrativas de Viagem
O texto define a autoficção, um gênero ainda sem definição unânime, mas que, através de contribuições teóricas, legitima um "espaço autobiográfico transgressor e ficcional" (Almeida, 2004: 283), onde as regras do romance tradicional não se aplicam. Serge Doubrovsky é apontado como o autor que cunhou o neologismo, ecoando o termo inglês "faction", uma mistura de realidade factual e ficção. A autoficção pressupõe a ficcionalização de dados autobiográficos, "a utilização romanesca de um episódio da sua vida, mas inteiramente reconstruído [autoficção]" (Jacques Petit, apud Almeida, 2004: 276), ou, segundo Doubrovsky (idem: 280), "mais no fictivo de um engodo convocado e provocado pela escrita". Esta introdução conceitual é crucial para a análise subsequente de Um Estranho em Goa, pois o livro combina elementos de viagem com uma forte componente autobiográfica, tornando-se um exemplo de hibridização genérica. A ambiguidade do gênero e a complexidade da sua definição são pontos chave para a compreensão da obra de Agualusa.
3. Um Estranho em Goa Ancoragem no Gênero Viático e suas Singularidades
O livro Um Estranho em Goa, publicado em 2000 por José Eduardo Agualusa, é apresentado como pertencente à "Série Oriental Viagens", que, segundo a editora, registra as impressões do Oriente nos dias atuais. A publicação inicial nas Edições Cotovia e posterior reedição na Colecção Biblioteca Editores Independentes, em 2007, são mencionados. A análise destaca a importância do mapa na narrativa, que, embora atual em seus limites territoriais, inclui um monstro no seu título, remetendo a um tipo de literatura de viagem mais próxima dos séculos passados, como observa Odile Gannier (2001: 65). A análise prévia dos conceitos de autoficção e da evolução da literatura de viagem são então combinadas com a especificidade de Um Estranho em Goa, preparando o cenário para a discussão da intertextualidade, da ambiguidade da viagem do protagonista, e da complexa relação entre realidade e ficção no relato do autor.
II.A Viagem como Metáfora Identidade e Colonialismo em Goa
A análise foca na experiência do narrador em Goa, destacando o seu processo de autodescoberta e a sua relação com a identidade portuguesa em confronto com o passado colonial. O livro questiona a construção da identidade nacional portuguesa, explorando a complexa relação entre o 'Eu' e o 'Outro' num contexto pós-colonial. Personagens como Sal, Pedro Dionísio, e Lili representam diferentes perspectivas sobre a história de Goa, sua identidade e suas relações com a cultura indiana e portuguesa. O estudo menciona figuras históricas como Salazar e São Francisco Xavier, cujas presenças, sejam físicas ou simbólicas, reverberam nas questões de memória, legado e identidade. Localizações importantes como Pangim e Anjuna, são utilizadas para explorar diferentes facetas da cultura Goesa e a experiência do narrador.
1. A Identidade em Trânsito O Eu e o Outro na Viagem a Goa
A experiência da viagem, e particularmente em Um Estranho em Goa, inevitavelmente traz à tona a temática da identidade. A viagem força uma reconceitualização do próprio 'eu' e do sistema de representações do indivíduo, como argumentam vários estudiosos (Outeirinho, 2003: 67; Ette, 2003: 30). Patrick e Huggan (2007: 14) observam que as narrativas de viagem seguem a trajetória de uma série de 'eus' em trânsito, mais do que a recuperação de um único 'eu'. A literatura de viagem, como género literário apropriado para a transmissão de conhecimento sobre o 'Outro' (Fabian, 2005: 82), serve como cenário ideal para a movimentação de personagens que desencadeiam problemáticas tanto perturbadoras quanto esclarecedoras para um 'eu' também em trânsito. Em Um Estranho em Goa, essa jornada interior e exterior se manifesta na experiência do narrador que se vê confrontado com a diversidade e a complexidade da cultura Goesa, questionando sua própria identidade em relação a este 'Outro'.
2. O Encontro com a Diferença Estranhamento e Comparação em Goa
A viagem a Goa, para o narrador, é marcada pelo estranhamento. A ida à feira de Anjuna, por exemplo, reforça esse sentimento, descrevendo-a como um local onde se acumulam estrangeiros que o fazem sentir um "estorvo" (Agualusa, 2007). O horror perante a diferença e a singularidade são temas presentes no relato. O processo de comparação entre o conhecido e o desconhecido é fundamental para a compreensão da experiência do narrador. Outeirinho (2003: 67, 68) e Gannier (2001: 72) salientam a comparação como o modo mais evidente de apreensão do real desconhecido, um jogo entre o conhecido e o desconhecido, o familiar e o estranho, o semelhante e o diferente. O narrador compara a ardência marítima com o "buxiqui" brasileiro e o transe do monumento ao Abade Faria com o "xinguilamento" angolano, revelando um processo de construção de significado através da relação com outras experiências e culturas.
3. O Legado Colonial e a Construção da Identidade em Goa
A análise aprofunda a crítica do narrador à visão idealizada da gesta portuguesa em Goa, desmistificando a narrativa de conquista e descoberta como uma forma de alívio das pressões territoriais internas em Portugal. A sua identidade, afirma o narrador, é fruto de uma escolha consciente de não ser europeu. A questão da identidade coletiva e sua relação com a geografia é levantada, citando Wieviorka (2000: 148) sobre a identidade coletiva e um sistema de valores definindo a unidade de um grupo, e Inocência Mata (2006: 290) sobre a coexistência de culturas numa sociedade multicultural. A análise menciona a perspectiva de Dona Marcelina, que, apesar de oferecer ao narrador um bolo tradicional goês (bebinca), demonstra uma postura superior, representando uma visão estereotipada e hierárquica do outro. A intolerância e o medo da miscigenação, como defendem Trevor Ling (1994:19) e Ashcroft, Griffiths e Tiffin, são temas relevantes para compreender as complexas dinâmicas de identidade em Goa.
III.Hibridização Genérica e Temática em Um Estranho em Goa
A análise destaca a natureza híbrida da obra de Agualusa, que transita entre diferentes gêneros literários, incluindo o romance policial e o fantástico, além da literatura de viagens e da autoficção. Este entrelaçamento genérico reflete a complexidade da experiência vivida pelo narrador e a sua observação da sociedade Goesa. A investigação utiliza conceitos teóricos de autores como Edward Said e outros estudiosos da literatura pós-colonial, para contextualizar e interpretar as nuances da obra. A globalização e o impacto do turismo na experiência da viagem são também considerados, analisando como Agualusa busca caminhos alternativos aos roteiros turísticos convencionais, concentrando-se em narrativas e relações humanas mais autênticas.
1. A Hibridização Genérica em Um Estranho em Goa
A análise salienta a dificuldade de catalogar a obra de Agualusa devido à sua natureza híbrida, que transcende as fronteiras tradicionais dos gêneros literários. A literatura de viagens, no caso de Um Estranho em Goa, serve como um exemplo máximo dessa heterogeneidade, absorvendo elementos de outras tipologias textuais. Nucera (2002: 242) enfatiza a natureza mutável da literatura de viagens, que se sobrepõe a outros gêneros numa fronteira em constante movimento. A obra incorpora textos multidisciplinares, de diversas áreas do conhecimento, encontrando unidade num género tão diverso. Essa hibridização torna a definição difícil, mas é também uma característica inerente a um tipo de texto sujeito ao movimento permanente e ao encontro fortuito, elementos cruciais para a experiência da viagem e para o desenvolvimento da narrativa. A fusão de géneros literários, como a autoficção, o romance, o policial e o fantástico, enriquece a narrativa e confere a Um Estranho em Goa uma singularidade notável no contexto da literatura de viagens contemporânea.
2. A Hibridização Temática Identidade Colonialismo e Outros Temas
Além da hibridização genérica, Um Estranho em Goa apresenta uma hibridização temática, articulando a base do gênero viático com outras abordagens, como a autoficção, o romance, o romance policial e o fantástico. A exploração das questões da identidade e do colonialismo são fundamentais para a trama e para o desenvolvimento do enredo. O livro não se limita à descrição de lugares exóticos, mas usa a viagem como metáfora para refletir sobre a experiência pessoal do narrador, a complexa herança do colonialismo português em Goa, e as dinâmicas de identidade numa sociedade multicultural e pós-colonial. A inclusão de elementos históricos, sociais e culturais de Goa demonstra a versatilidade da obra e como o autor consegue incorporar temas diversos e complexos num único relato. A originalidade de Agualusa reside na capacidade de conjugar esses temas diversos num todo coerente e rico.
3. O Conhecimento do Outro na Era Digital A Singularidade de Agualusa
O texto destaca a diferença entre a obra de Agualusa e a de outros escritores de viagens na era digital, onde o conhecimento do 'outro' e do mundo está, muitas vezes, a um clique de distância. Embora Um Estranho em Goa seja filiado ao gênero viático, ele o transcende, incluindo outras abordagens que tornam o texto mais rico e cativante. A narrativa se mantém una e coesa, mas incorpora elementos que a diferenciam. A diversidade textual não compromete a unidade da narrativa, que utiliza as personagens como seu principal instrumento de aplicação, condicionando artisticamente toda a narrativa. A análise conclui que a originalidade da obra reside na sua capacidade de conciliar os aspectos fundamentais do gênero viático com outras abordagens, resultando numa narrativa singular e cativante que ultrapassa as limitações dos relatos de viagem convencionais.