
Aposentadoria Trans: Análise Previdenciária
Informações do documento
Autor | Diogo Arthur Santos Leite |
instructor | Camilla De Magalhães Gomes, Professora Doutora |
Escola | Centro Universitário de Brasília - UniCEUB, Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais – FAJS |
Curso | Direito |
Tipo de documento | Artigo científico |
Local | Brasília |
Idioma | Portuguese |
Formato | |
Tamanho | 472.86 KB |
Resumo
I.Análise Interpretativa da Aposentadoria de Transexuais e Travestis no Brasil
Este estudo analisa as proposições interpretativas sobre a regra de aposentadoria aplicável a transexuais e travestis no Brasil, considerando a diferença de cinco anos nos requisitos de inativação para mulheres. A pesquisa utiliza a teoria da performatividade de gênero, desmistificando a ideia de gênero como atributo natural do corpo. Três abordagens interpretativas são analisadas: a formalista (baseada em registros públicos), a materialista (baseada na identidade de gênero autodeterminada), e a constitucionalista (proposta pelo estudo, considerando a vulnerabilidade do grupo e os valores constitucionais). O estudo destaca a hipervulnerabilidade das pessoas trans e a necessidade de uma interpretação da legislação previdenciária que garanta a justiça social e o bem-estar social desse grupo, considerando a dignidade da pessoa humana e os princípios da igualdade e isonomia.
1. Introdução O Problema da Aposentadoria para Pessoas Trans
A pesquisa inicia abordando a problemática da aposentadoria para transexuais e travestis no Brasil, destacando a disparidade de cinco anos nos requisitos de idade e tempo de contribuição entre homens e mulheres. O estudo propõe a compreensão do gênero sob a ótica da performatividade, como construção social, em contraponto à visão essencialista que o vincula ao corpo sexual. A análise centraliza-se na interpretação da legislação previdenciária e sua aplicação a este grupo, considerando a vulnerabilidade social a que estão submetidos. A introdução apresenta brevemente a realidade das pessoas trans, exemplificando com a história de Lili Elbe (do filme “A Garota Dinamarquesa”) e Gisberta, transsexual assassinada em Portugal, ambas representativas do estigma, preconceito e violência que marcam a experiência desse grupo. A necessidade de uma abordagem sensível do Estado e dos operadores do Direito em relação à Previdência Social é ressaltada, considerando a função fundamental da Seguridade Social na proteção das contingências sociais. O modelo previdenciário atual, baseado em uma visão binária e cisnormativa dos gêneros, necessita de revisão urgente e interpretação mais inclusiva, que contemple a realidade das pessoas trans, evitando sua exclusão.
2. A Teoria da Performatividade e a Construção Social do Gênero
Esta seção discute a fundamentação teórica do estudo, focando na teoria da performatividade de gênero. A autora critica a visão binária e essencialista do gênero, que o define como atributo natural do corpo, refutando essa concepção. A performatividade, segundo a pesquisa, entende o gênero como um construto social moldado por práticas e comportamentos repetidos, seguindo normas socialmente instituídas. A análise critica a abordagem binária, cisnormativa do sistema jurídico e da legislação previdenciária, que não contempla adequadamente a diversidade de gêneros e identidades. São analisados os conceitos de transgeneralidade, transexualidade e travestilidade, problematizando a criação de categorias fechadas para identidades fluidas e complexas. O texto cita autoras feministas como Simone de Beauvoir e Joan Scott, reconhecendo as contribuições de seus estudos sobre a construção social da identidade feminina, mas apontando a insuficiência de suas análises para explicar a transgeneralidade, por ainda se basearem em uma perspectiva binária. As ideias de Judith Butler são centrais para a fundamentação teórica, especialmente a compreensão do gênero como performatividade, destacando a obra em detrimento do 'fazedor', rompendo com a ideia de uma identidade preexistente e enfatizando a construção contínua da identidade de gênero através da ação e da expressão.
3. O Estado de Coisas Inconstitucional e a Necessidade de Discriminação Positiva
Esta seção discute a situação de vulnerabilidade das pessoas trans e a necessidade de uma resposta do Estado que vá além de meras declarações. A pesquisa argumenta que a vulnerabilidade social das pessoas trans, marcada por altos índices de violência, preconceito e exclusão do mercado de trabalho, exige uma interpretação da legislação previdenciária que considere sua realidade. São apresentados dados estatísticos que revelam a gravidade da situação: o Brasil como país com maior número de assassinatos de pessoas trans (Transgender Europe, 2016), as dificuldades de acesso ao trabalho formal que levam muitas ao trabalho sexual (Relatório de Violência Homofóbica no Brasil, 2016), e a baixa expectativa de vida desse grupo (Associação Nacional de Travestis e Transexuais, 2018). A ausência de políticas públicas e dados estatísticos específicos é apontada como indicador da negação de existência das identidades trans pelo Estado, justificando a urgente necessidade de medidas afirmativas. O conceito de 'estado de coisas inconstitucional' é central, argumentando que a situação atual viola direitos fundamentais, requerendo uma intervenção para corrigir essa inconstitucionalidade estrutural e garantir a efetivação dos direitos previdenciários. A importância da justiça social e do bem-estar social como valores constitucionais que devem nortear a interpretação da legislação previdenciária é destacada, levando em consideração a perspectiva inclusiva.
II.Abordagem Formalista da Aposentadoria
A abordagem formalista propõe uma 'regra de três' para o cálculo da aposentadoria, levando em conta o gênero constante do registro público. O tempo de contribuição seria convertido proporcionalmente entre os requisitos para homens e mulheres. No entanto, essa abordagem apresenta dificuldades práticas, considerando o sigilo da alteração de gênero no registro civil e a ausência de dados estatísticos sobre aposentadoria de pessoas trans no Brasil. O estudo cita autores como Jorge (2018), Freitas e Vita (2017), Pestana e Araujo (2018), e Alves (2018), além de Araujo (2000).
1. A Regra de Três e a Proporcionalidade dos Requisitos de Aposentadoria
A abordagem formalista para a aposentadoria de pessoas trans propõe uma 'regra de três', baseada na proporcionalidade dos requisitos de acordo com o gênero registrado publicamente. O método sugere que o tempo de contribuição de uma pessoa trans seja convertido para se adequar aos requisitos do gênero registrado após a alteração. Um exemplo dado é o de uma pessoa que, registrada como homem, contribui por 20 anos e depois muda seu registro para mulher. Seu tempo de contribuição seria então recalculado, proporcionalmente, baseado nos anos necessários para a aposentadoria de homens e mulheres. Essa proporcionalidade se aplicaria também aos requisitos etários. Autores como Jorge (2018), Freitas e Vita (2017), Pestana e Araujo (2018), Alves (2018) e Araujo (2000) são mencionados como defensores dessa abordagem. A essência da proposta reside na adequação formal aos requisitos previdenciários em função do gênero registrado, buscando uma solução aparentemente neutra e objetiva.
2. Dificuldades Práticas e Limitações da Abordagem Formalista
Apesar da aparente simplicidade, a abordagem formalista enfrenta desafios práticos significativos. O estudo aponta a dificuldade de aplicar a 'regra de três' considerando o sigilo da alteração de gênero no registro civil, garantido pelo Provimento CNJ nº 73/2018. A impossibilidade de acesso a informações confidenciais pelos órgãos previdenciários dificulta a conversão do tempo de contribuição de acordo com os gêneros registrais. Além disso, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Extraordinário nº 670.422/RS (2018) que veta a inclusão do termo “transgênero” no assento de nascimento cria outra barreira prática para a implementação do método. O argumento de que o número de pessoas trans no Brasil é pequeno e não afetaria significativamente o orçamento da previdência é considerado, mas não minimiza as dificuldades operacionais inerentes ao sistema proposto. A natureza declaratória da alteração do gênero no registro público, reconhecida pelo STF na ADI nº 4.275/DF (2018), é destacada, mas não resolve a questão prática da aplicação da 'regra de três'.
III.Abordagem Materialista da Aposentadoria
A abordagem materialista rejeita a contagem ponderada baseada em registros públicos, argumentando que o reconhecimento jurídico da identidade trans deve se basear na identidade de gênero autodeterminada, em consonância com os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. Essa abordagem é criticada por potencialmente gerar tratamento discriminatório entre homens trans e cisgênero. Autores como Fluminhan (2016), Figueiredo e Amado (2016), Cruz (2014), Siqueira e Nunes (2018), Quadrini e Venaizzi (2016), e Souza (2015) são referenciados.
1. A Identidade de Gênero Autodeterminada como Base para a Aposentadoria
A abordagem materialista para a questão da aposentadoria de pessoas trans defende que a regra de inativação deve corresponder ao gênero autodeterminado, independente de alterações documentais. Essa perspectiva enfatiza o reconhecimento jurídico da identidade de gênero como manifestação da personalidade humana, priorizando a autopercepção de gênero sobre a informação registral. A argumentação central se baseia nos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, buscando garantir o acesso aos direitos previdenciários sem discriminação. Autores como Fluminhan (2016), Figueiredo e Amado (2016), Cruz (2014), Siqueira e Nunes (2018), Quadrini e Venaizzi (2016) e Souza (2015) são citados como representantes desta abordagem. O foco principal está na realidade fática da identidade de gênero, rejeitando a utilização de documentos como critério determinante para a concessão da aposentadoria, uma vez que a manifestação da transgeneralidade não coincide necessariamente com a retificação documental.
2. Crítica à Abordagem Materialista e suas Limitações
Apesar de sua consonância com a noção de gênero como performatividade e de garantir a reconhecibilidade das identidades trans sem discriminação, a abordagem materialista não está isenta de críticas. O estudo aponta que a ênfase exclusiva na identidade autodeclarada pode ignorar a complexidade da situação de homens trans e travestis. A questão da vulnerabilidade específica de homens trans, que também justificaria tratamento diferenciado, não é completamente contemplada. O documento questiona se seria justo que homens trans se aposentassem apenas de acordo com os requisitos mais rigorosos para homens cisgênero. Outro ponto crítico é a falta de diretrizes claras para a aposentadoria de travestis, que frequentemente não se identificam exclusivamente como homens ou mulheres. A possibilidade de tratamento discriminatório entre homens trans e cisgênero, devido à aplicação de critérios diferentes, é levantada como uma potencial consequência negativa desta abordagem, destacando que a alteração registral tem uma natureza declaratória, reconhecendo e não constituindo a identidade de gênero.
IV.Abordagem Constitucionalista da Aposentadoria
A abordagem constitucionalista, proposta pelo estudo, defende a aplicação dos requisitos mais benéficos (destinados às mulheres) para a aposentadoria de transexuais e travestis, considerando sua vulnerabilidade social. Esta abordagem justifica a discriminação positiva com base na realidade social e na interpretação teleológica da legislação previdenciária. A análise leva em conta a alta taxa de homicídios de pessoas trans no Brasil (dados da Transgender Europe, 2016), a dificuldade de acesso ao mercado de trabalho, e a baixa expectativa de vida (dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, 2018). O estudo busca conciliar a proteção da identidade trans com a garantia de seus direitos previdenciários, considerando o sigilo da alteração de gênero.
1. Discriminação Positiva e a Vulnerabilidade das Pessoas Trans
A abordagem constitucionalista, proposta pelo estudo, advoga pela aplicação da regra de aposentadoria mais benéfica (destinada às mulheres) para transexuais e travestis. Essa proposta se fundamenta na vulnerabilidade social desse grupo, justificando a discriminação positiva como medida para garantir a justiça social e o bem-estar social, princípios basilares da Seguridade e Previdência Sociais brasileiras, conforme a Constituição Federal de 1988 (CRFB/1988). O estudo argumenta que a diferença de cinco anos nos requisitos de aposentadoria para mulheres em relação aos homens, embora recomendável em princípio, se baseia em normas sociais hegemônicas que relacionam gênero e corpo de forma binária e cisnormativa, ignorando a diversidade de identidades e expressões de gênero. A proposta busca conciliar a proteção dessa parcela da população com a finalidade objetiva da lei e os valores constitucionais, considerando a realidade social marcada pelo estigma, preconceito e violência, como demonstram dados de homicídios de pessoas trans (Transgender Europe, 2016), dificuldades no mercado de trabalho e baixa expectativa de vida (Associação Nacional de Travestis e Transexuais, 2018).
2. Consideração da Vulnerabilidade de Homens Transexuais e Travestis
A proposta constitucionalista vai além das abordagens anteriores ao considerar especificamente a situação de vulnerabilidade dos homens transexuais e travestis. O estudo questiona a aplicação de regras mais rigorosas para homens trans, argumentando que eles também experimentam vulnerabilidade social durante toda a vida. A expectativa de direito em se aposentar mais cedo, projetada como mulher cisgênero, é um fator relevante para os homens trans que se reconhecem como tal durante a vida funcional. O texto menciona a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a inexistência de direito adquirido a regimes jurídicos, inclusive previdenciários, e argumenta que a vulnerabilidade social desse grupo justifica a aplicação de regras mais benéficas. No caso das travestis, que geralmente não se identificam como homens ou mulheres, a proposta busca uma solução que transcenda a lógica binária de gênero, considerando sua própria identidade/performatividade híbrida, e garantindo sua proteção pelos direitos da seguridade social. A autora reconhece o risco de mal-interpretação da proposta, enfatizando que a intenção é garantir, e não impor, o direito à aposentadoria pelo critério mais brando.
3. Medidas para Preservar a Reconhecibilidade e a Privacidade das Pessoas Trans
A abordagem constitucionalista reconhece a possibilidade de críticas à discriminação positiva, que poderia prejudicar a reconhecibilidade das identidades trans. Para mitigar essa questão, o estudo sugere a manutenção do sigilo da alteração de gênero no registro público, de acordo com o Provimento CNJ nº 73/2018. A quebra do sigilo seria permitida apenas a critério do indivíduo, caso este desejasse se beneficiar das regras mais brandas de aposentadoria. Isso preserva a identidade trans, vinculando a discriminação positiva à vontade do interessado. Adicionalmente, a tramitação velada do processo administrativo de aposentadoria e a ocultação do gênero em atos concessórios publicados são medidas recomendadas para garantir a intimidade e a privacidade da pessoa transexual, evitando sua exposição indevida. A autora ressalta que o objetivo não é impor um tratamento cisnormativo, mas sim garantir a proteção social adequada, com base na vulnerabilidade específica do grupo e nos valores constitucionais da justiça e do bem-estar social.
V.Legislação e Jurisprudência Relevante
O estudo menciona o Decreto nº 8.727/2016 (uso do nome social), a ADI nº 4.275/DF (2018) e o RE nº 670.422/RS (2018) do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a alteração de prenome e gênero no registro civil. A jurisprudência do STF reconhece o direito à alteração independentemente de intervenções médicas ou decisão judicial, reforçando a identidade de gênero como elemento fundamental de reconhecimento legal. Também cita o Provimento CNJ nº 73/2018, que confere sigilo à alteração de gênero.
1. O Decreto nº 8.727 2016 e o Reconhecimento da Identidade de Gênero
O estudo destaca o Decreto nº 8.727/2016 como um marco legal importante para o reconhecimento da identidade de gênero de travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal. O inciso II do art. 1º deste decreto define a identidade de gênero como elemento de relação da pessoa humana com as expressões de masculinidade e feminilidade, manifestada a partir de sua prática social, sem vinculação necessária com o corpo sexual. Essa definição aproxima-se do conceito de performatividade de Butler. A menção a este decreto ilustra a crescente maturidade social, política e jurídica em torno da questão da identidade de gênero, mostrando a evolução do reconhecimento legal, embora as medidas legais, por si só, não sejam suficientes para retirar as pessoas trans da situação de hipervulnerabilidade.
2. Jurisprudência do STF ADI nº 4.275 DF 2018 e RE nº 670.422 RS 2018
O estudo analisa decisões relevantes do Supremo Tribunal Federal (STF) que impactam diretamente nos direitos das pessoas trans. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.275/DF (2018) reconhece o direito à substituição de prenome e 'sexo' no registro civil, independentemente de cirurgia, tratamento hormonal ou decisão judicial. Essa decisão reforça o entendimento de que a identidade de gênero é manifestação da personalidade e que o Estado tem apenas o papel de reconhecê-la, e não constituí-la. O Recurso Extraordinário (RE) nº 670.422/RS (2018) reitera a independência da alteração registral de intervenções médicas ou mandado judicial e acrescenta a vedação à inclusão do termo 'transgênero' no assento de nascimento. Ambas as decisões são fundamentais para o debate sobre a aposentadoria, pois mostram a evolução jurisprudencial em relação ao reconhecimento da identidade de gênero e sua importância no acesso aos direitos. O estudo, no entanto, aponta que mesmo com essas decisões, a hipervulnerabilidade das pessoas trans permanece devido à violência, exclusão social e falta de acesso ao mercado de trabalho.
3. Provimento CNJ nº 73 2018 e a Questão do Sigilo
O Provimento CNJ nº 73/2018, que confere sigilo à alteração de gênero no registro público, é considerado no estudo por sua relevância prática para o tema da aposentadoria. O sigilo imposto pela legislação é um fator importante a ser considerado nas discussões sobre as diferentes abordagens interpretativas da regra de aposentadoria, pois impacta diretamente na possibilidade de aplicação de métodos que requerem acesso a dados sensíveis. O artigo 5º do Provimento, que prevê a quebra do sigilo a partir do pedido do interessado, é relevante para a abordagem constitucionalista proposta, pois permite que o direito à aposentadoria por critérios mais benéficos seja exercido sem comprometer a privacidade da pessoa trans. A legislação sobre o uso do nome social, incluindo a Resolução CNJ nº 270 (2018), Portaria PGR/MPU nº 7 (2018), Resolução OAB nº 5 (2016), e outras, também são mencionadas como parte do contexto legal que busca garantir maior dignidade às pessoas trans.