Futebol de Várzea em Cuiabá: Mediação Cultural

A pesquisa, realizada na comunidade São Gonçalo Beira Rio em Cuiabá/MT, teve como objetivo principal estudar o futebol de várzea como mediador cultural e das relações sociais. O estudo buscava ir além de um simples registro histórico, focando na importância do futebol na construção de trajetórias de lazer e na mediação de conflitos locais. A pergunta norteadora da pesquisa foi: 'Que papel teria o futebol de várzea na mediação das diferenças locais, que maneiras de fazer sua prática interatuam e modificam o espaço e as relações?' Essa questão central guiou a coleta e análise dos dados, buscando compreender como o futebol moldava a vida comunitária e as relações entre seus moradores. A investigação se aprofundou na intensa participação da comunidade em torno do campo de futebol, observando a transformação do cotidiano nos dias de jogos e como o futebol exigia novas rotinas dos moradores. O estudo focou, particularmente, em dois times locais: São Gonçalo Beira Rio Futebol Clube e Milionários Futebol Clube.

O método escolhido foi a História de Vida, com entrevistas semiestruturadas como principal técnica de coleta de dados durante a pesquisa de campo. A opção pela História de Vida permitiu acessar as narrativas pessoais dos atores sociais envolvidos, revelando suas experiências e percepções sobre o futebol de várzea. A pesquisa reconhece a distinção entre 'life story' e 'life history', optando por um enfoque que integra relatos, documentos e entrevistas, valorizando a perspectiva dos narradores. A seleção dos entrevistados levou em conta seu envolvimento com o futebol (como jogador, torcedor ou dirigente), seu desejo de participar da pesquisa, sua disponibilidade e a dificuldade de acesso a alguns participantes, considerando mudanças de residência ou falecimentos. A análise das entrevistas seguiu até o ponto de saturação, ou seja, quando os temas abordados passaram a se repetir, indicando o esgotamento do assunto, garantindo a riqueza e profundidade da informação coletada.

A pesquisa se baseou na perspectiva teórica de Michel de Certeau, que valoriza as 'maneiras de fazer', isto é, as práticas cotidianas e as estratégias dos indivíduos em seu ambiente social. O conceito de conhecimento popular, segundo Babini e Ander-Egg, foi fundamental para compreender as narrativas dos participantes. Este tipo de conhecimento, caracterizado como superficial, sensitivo, subjetivo e assistemático, preenche a vida diária e se adquire sem métodos formais, refletindo a experiência vivida. De Certeau's 'análise polemológica da cultura', que destaca a articulação de conflitos na cultura, foi aplicada para analisar as narrativas sobre o futebol de várzea, procurando entender como as práticas cotidianas revelam as relações de poder e resistência dentro da comunidade. A distinção entre 'tática' e 'estratégia', também proposta por De Certeau, orientou a análise dos dados, entendendo a tática como as ações locais e a estratégia como a visão macro do empreendimento.

A seção 'Táticas Organizacionais' explora a estrutura interna dos times de futebol de várzea, focando em seus aspectos organizacionais. Os relatos coletados descrevem como cada time se articulava em diferentes áreas: diretoria, torcida, formação de equipes femininas, equipe técnica, transporte para jogos em outros bairros e alimentação. Cada narrador se concentrou no seu próprio time, sugerindo que as memórias funcionam como forma de autoproteção ou defesa. Além disso, a pesquisa descreve a existência de responsabilidades pela manutenção dos campos, celebrações pós-jogo e a colaboração financeira para árbitros e outras despesas. Uma diferença marcante é que o São Gonçalo Beira Rio Futebol Clube era composto exclusivamente por moradores da comunidade, enquanto o Milionários Futebol Clube incluía jogadores de vários bairros, revelando as diferenças sociais e espaciais na formação das equipes e torcidas. Essa diferença na composição dos times é crucial para compreender as dinâmicas sociais e as rivalidades que se desenvolveram.

A pesquisa destaca uma diferença crucial entre os dois times: após a formação do Milionários F.C., o São Gonçalo Beira Rio F.C. raramente venceu os confrontos diretos. O Milionários F.C. frequentemente convidava jogadores de outros bairros, o que contribuiu para sua superioridade em campo. As vitórias e derrotas acentuaram a competição entre os times e delimitaram seus territórios simbólicos. Embora o São Gonçalo Beira Rio F.C. tenha mantido uma identidade mais 'bairrista', a pesquisa evita atribuir suas derrotas somente a essa característica, preferindo analisar as diferentes estratégias e maneiras de lidar com a vida social na comunidade. O futebol, nesse contexto, tornou-se um instrumento de mediação de diferenças financeiras, políticas, ideológicas e sociais, expressando contradições, rivalidades e emoções coletivas.

A pesquisa discute o papel da mulher no futebol de várzea, destacando o caso de Dona Pedrosa. Sua trajetória é analisada como um exemplo de subversão dos padrões patriarcais. Inicialmente, Dona Pedrosa desempenhava papéis tradicionais de apoio, como lavar uniformes e servir água. No entanto, ela se tornou uma figura central no conflito entre os dois times, assumindo a presidência do Milionários F.C. Sua atuação ultrapassa as funções tradicionais, mostrando-se engajada na luta e na defesa do seu time, desafiando a estrutura patriarcal predominante no ambiente esportivo. A participação de Dona Pedrosa é interpretada como uma desterritorialização e reterritorialização, onde ela transcende os limites de gênero e se coloca em posição de igualdade dentro do espaço social, delineando 'trocas sociais, estilos de invenções técnicas e um estilo de resistência moral'. Essa atuação é vista como um rizoma que ramifica novas possibilidades e reflexos socioculturais.

A seção centraliza-se na intensa rivalidade entre o São Gonçalo Beira Rio Futebol Clube e o Milionários Futebol Clube, ambos da comunidade São Gonçalo Beira Rio em Cuiabá/MT. Essa rivalidade, profundamente enraizada na história da comunidade, é analisada a partir dos relatos dos entrevistados. A origem do Milionários F.C. está relacionada a uma dissidência interna no São Gonçalo Beira Rio F.C., onde jogadores mais velhos ou com baixo desempenho foram excluídos, levando-os a formar um novo time. As narrativas evidenciam a força e a persistência dessa rivalidade, que transcende os jogos em si, permeando as relações sociais na comunidade. A pesquisa destaca a quase total vitória do Milionários F.C. nos confrontos diretos, atribuindo-lhe um status de 'vitorioso'. Os relatos descrevem a intensidade emocional dos jogos, com gritos, gestos e linguagem forte, refletindo a luta pela supremacia entre os times. Embora a rivalidade seja intensa, a pesquisa observa que, após os jogos, as relações geralmente voltam ao normal, mostrando que a competição esportiva é parte integrante da vida social da comunidade.

A rivalidade entre os times não é apenas esportiva; suas raízes estão profundamente conectadas às diferenças socioeconômicas da comunidade. O bairro São Gonçalo, localizado às margens do Rio Cuiabá, experimentou transformações no acesso e nas atividades econômicas ao longo do tempo. A fabricação de cerâmica, a agricultura de subsistência e a pesca foram as principais atividades, mas a pesca sofreu com a poluição e a instalação de dragas. As casas próximas ao campo do São Gonçalo Beira Rio F.C. são mais antigas, refletindo a história da comunidade, e concentram atividades tradicionais como a produção de cerâmica, folclore (siriri e cururu) e peixarias. As diferenças socioeconômicas geram conflitos que se manifestam no futebol de várzea, tornando-o um mediador das tensões sociais. As rivalidades, assim, não se limitam à competição esportiva, mas refletem as desigualdades e os conflitos arraigados na comunidade, com o campo de futebol se tornando um palco para a expressão desses desequilíbrios de poder.

Apesar do São Gonçalo Beira Rio F.C. ser formado por moradores antigos, e o Milionários F.C. ter se originado de uma dissidência interna, a pesquisa aponta uma reversão interessante na dinâmica da rivalidade. Inicialmente 'excluídos', os jogadores do Milionários F.C., ao recrutar jogadores de outros bairros, conseguiram reverter o quadro de derrotas. Essa estratégia bem-sucedida mudou o discurso: de 'derrotados' para 'vitoriosos' dentro da própria comunidade. A pesquisa analisa essa inversão através dos conceitos de 'efeitos de identidade' e ambivalências criadas pela rivalidade. Alguns narradores minimizam ou ignoram a rivalidade persistente, enquanto outros reconhecem sua presença latente e o mal-estar que ainda provoca. A análise final destaca o movimento de desterritorialização e reterritorialização, não apenas dos jogadores, mas também das estruturas sociais, mostrando como o futebol de várzea, no caso, atuou como um mediador dessas transformações.

A pesquisa conclui que o futebol de várzea em São Gonçalo Beira Rio, Cuiabá/MT, desempenhou um papel crucial na construção da identidade comunitária e no fornecimento de lazer. Os relatos demonstram que o futebol era o lazer principal da época, criando uma forte sensação de comunidade e padronizando comportamentos. A criação do Milionários F.C., com jogadores de fora da comunidade, gerou um choque cultural e ameaça aos laços sociais existentes. A participação em torneios fora da comunidade é analisada como uma busca por novos desafios e maneiras de fazer, mimeticamente reproduzidas nos costumes, incluindo o transporte precário e arriscado em caminhões. Esse desejo de participar de competições externas também sugere uma busca pelo fortalecimento de um 'nós' comum, buscando novas táticas enquanto mantêm as estratégias gerais, demonstrando a capacidade de adaptação e inovação da comunidade.

O estudo evidencia como o futebol de várzea mediou as relações sociais na comunidade, gerando padrões distintos de interação e solidariedade. A forte rivalidade entre os dois times, São Gonçalo Beira Rio F.C. e Milionários F.C., é analisada como um reflexo das tensões e conflitos sociais presentes na comunidade. A pesquisa cita Giulianotti (2010) para argumentar que a rivalidade no futebol frequentemente se conecta a divisões históricas e culturais mais profundas, reforçando laços afetivos entre indivíduos e clubes. No entanto, a pesquisa também observa uma inversão nessa dinâmica, onde os moradores menos favorecidos economicamente mantêm as atividades tradicionais, como restaurantes, artesanato e dança, demonstrando uma complexa relação entre o esporte, a economia e a cultura local. O futebol, nesse sentido, é um microcosmo que espelha e, ao mesmo tempo, molda as relações sociais.

Em conclusão, a pesquisa demonstra o papel central do futebol de várzea como mediador cultural na comunidade São Gonçalo Beira Rio, em Cuiabá/MT. O futebol espelhou as relações sociais, os conflitos e as manifestações culturais da comunidade, mostrando como a prática esportiva contribuiu para a formação de laços comunitários e a construção de identidades locais. A pesquisa ressalta a importância de considerar a dimensão cultural e social do futebol de várzea para uma compreensão mais abrangente da dinâmica comunitária e a complexa interação entre o esporte, as relações sociais e a identidade local. A análise, amparada em autores como De Certeau e Giulianotti, destaca a importância de ir além da análise puramente esportiva para compreender o significado social e cultural do futebol de várzea em um contexto específico.