Nem presa nem morta: análise dos discursos sobre a descriminalização do aborto no Supremo Tribunal Federal

Aborto: Discursos no STF

Informações do documento

Autor

Emily De Oliveira Tomasi

Escola

Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) - Campus Erechim

Curso Ciências Sociais
Tipo de documento Trabalho de Conclusão de Curso
Local Erechim
Idioma Portuguese
Formato | PDF
Tamanho 508.70 KB

Resumo

I.A Criminalização do Aborto no Brasil e o Debate da Descriminalização

Este documento analisa o debate sobre a descriminalização do aborto no Brasil, focando na ADPF 442, ajuizada pelo PSOL. A lei atual, presente no Código Penal Brasileiro desde 1940, criminaliza o aborto, com exceções em casos de risco de vida da mãe, violência sexual, e anencefalia. Apesar da criminalização, a taxa de mortalidade materna devido a abortos clandestinos continua alta. O debate é intenso, opondo movimentos sociais que defendem os direitos reprodutivos e a autonomia feminina a organizações religiosas contrárias à legalização do aborto. O estudo analisa 54 discursos de especialistas, 37 a favor e 17 contra a descriminalização, categorizando os argumentos em jurídicos, científicos e religiosos.

1.1 A Criminalização do Aborto no Brasil Histórico e Dados

O texto inicia abordando a criminalização do aborto no Brasil, presente no Código Penal de 1940, com exceções para risco de vida da mulher, violência sexual e anencefalia. Apesar da legislação restritiva, o número de abortos continua crescendo, levando a um aumento significativo na taxa de mortalidade materna relacionada a abortos inseguros. Este aumento impulsionou um debate intenso ao longo dos anos, com movimentos sociais se contrapondo aos argumentos de organizações religiosas. O estudo em questão foca na análise de discursos proferidos em assembleias de descriminalização do aborto realizadas em agosto de 2018 no Supremo Tribunal Federal (STF), tendo como base a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, proposta pelo PSOL, que buscava a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. A metodologia utilizada foi a análise de discurso, analisando 54 discursos de especialistas, sendo 37 favoráveis e 17 contrários à descriminalização. A análise separou os argumentos em categorias jurídicas, científicas e religiosas, revelando uma divergência entre a posição majoritária na Câmara dos Deputados (contra a descriminalização) e a opinião da maioria dos especialistas convidados (a favor da descriminalização).

1.2 Contexto Histórico Internacional e Situação na América Latina

O documento apresenta um breve panorama histórico da percepção do aborto em diferentes épocas e culturas. Na antiguidade greco-romana, o aborto era lícito com a permissão do marido, pai ou empregador. Durante o Renascimento, a prática era tolerada apenas para mulheres pobres e prostitutas, como forma de controle de natalidade. A percepção do feto como entidade autônoma, surgida com as revoluções científicas, intensificou o envolvimento das religiões nesse debate. A pesquisa destaca a diferença na legislação sobre aborto entre diversos países, influenciada pelo tipo de governo e pela relação com instituições religiosas. Nos Estados Unidos (Roe vs. Wade) e Canadá (Mongentaler), o direito ao aborto foi reconhecido na década de 1970, gerando manifestações em países europeus sobre a inconstitucionalidade da proibição do aborto nos primeiros trimestres de gestação. A América Latina apresenta uma realidade complexa, com apenas um em cada quatro abortos considerados seguros, embora haja redução de mortes devido à substituição de procedimentos invasivos por métodos farmacológicos. A pesquisa cita exemplos específicos de diferentes países latino-americanos: Porto Rico (proibição em hospitais públicos), Uruguai (Lei 18.987 com condições restritivas), Cuba (acesso gratuito desde 1965), e República Dominicana, Haiti e Suriname (proibição total). Essas variações demonstram a diversidade de abordagens legislativas em relação ao aborto na região.

1.3 Abordagem do Movimento Feminista e o Acesso à Contracepção

O texto destaca a atuação do movimento feminista na discussão sobre o aborto como política pública, enfatizando o acesso a informações sobre métodos contraceptivos para as camadas mais baixas da população. Apesar da Lei de Planejamento Familiar (Lei 9.263/96) obrigar o SUS a fornecer assistência à concepção e contracepção, o acesso desigual a informações e métodos para prevenir gravidez indesejada é apontado como um problema, com o aborto induzido muitas vezes atuando como método de planejamento familiar para mulheres carentes. A compreensão da dicotomia entre a esfera pública e privada na sociedade é crucial para entender a postura feminista, que busca evidenciar essa divisão e as desigualdades que afetam as mulheres. A luta pela emancipação política e a autonomia do corpo feminino são elementos centrais do debate sobre a descriminalização do aborto. A obra de Flávia Biroli (2014) é citada para ilustrar a visão crítica sobre a relação entre as esferas pública e privada e a importância da politização do que ocorre na esfera pública. O movimento feminista defende que negar a descriminalização do aborto fere o princípio da autonomia feminina, fundamental para a cidadania.

II.Atores Políticos e Religiosos no Debate

A discussão envolve diversos atores. A Igreja Católica e igrejas evangélicas têm forte influência, frequentemente opondo-se à descriminalização do aborto, baseando seus argumentos em crenças sobre a inviolabilidade da vida. Por outro lado, o movimento feminista defende a autonomia da mulher e o acesso à saúde reprodutiva, argumentando que a criminalização impacta desproporcionalmente mulheres pobres e negras, aumentando a mortalidade materna. O papel do Estado, buscando o equilíbrio entre a laicidade e a influência religiosa, é crucial. A participação feminina no Congresso, embora crescente, ainda enfrenta desafios na aprovação de leis favoráveis à legalização do aborto.

2.1 O Papel da Igreja Católica e o Debate sobre a Laicidade do Estado

A seção discute a influência da Igreja Católica no debate sobre o aborto no Brasil, considerando a separação Igreja-Estado proclamada com a República. Apesar da laicidade do Estado, a Igreja Católica se tornou uma instituição política autônoma, atuando em campanhas pelos direitos sociais e culturais, incluindo o engajamento na defesa dos direitos humanos. No entanto, sua atuação no debate sobre o aborto é marcada por uma postura contrária à descriminalização, frequentemente baseada em princípios religiosos sobre a inviolabilidade da vida. A Igreja Católica, ao longo da história, tem se posicionado contra a descriminalização do aborto, influenciando a elaboração de leis e políticas públicas relacionadas à saúde reprodutiva. A citação de Monteiro (2012, p. 175) ilustra a complexidade do papel da Igreja Católica na esfera política, econômica e social brasileira. O processo de laicização do Estado não impediu a Igreja Católica de manter uma forte presença pública e política, participando ativamente de movimentos que moldam a sociedade civil.

2.2 O Surgimento de Novos Atores Religiosos e o Ativismo Conservador

A análise explora o surgimento de novos atores religiosos no cenário brasileiro, particularmente as igrejas evangélicas, principalmente neopentecostais, e sua crescente influência no debate sobre o aborto. A partir da primeira metade do século XX, com o avanço da modernidade urbano-industrial e a redemocratização, a Igreja Católica enfrentou concorrência crescente de outras religiões, incluindo as afro-brasileiras, protestantes e espíritas (Mariano, 2011). O aumento do número de pentecostais, com sua grande capacidade de conversão, quebrou o monopólio religioso católico, levando a um modelo mais pluralista. As estratégias de atuação diferem entre católicos e pentecostais: enquanto os pentecostais se envolviam mais na mídia e na política partidária, os católicos preferiam parcerias com o poder público e campanhas publicitárias para promover seus valores, pressionando autoridades e parlamentares. Somente a partir dos anos 90, observou-se um aumento da candidatura de religiosos católicos e de candidatos que utilizavam a identidade católica como instrumento político. Este cenário complexo demonstra a diversidade de atores religiosos e suas diferentes estratégias de atuação política no debate sobre o aborto no Brasil.

III.Legislação e Projetos de Lei

A legalização do aborto em outros países, como nos EUA (Roe vs. Wade) e Canadá (Mongentaler), serve como referência no debate brasileiro. No entanto, a pesquisa de Sganzerla (2008) indica que, apesar de diversos projetos de lei, a maioria na Câmara dos Deputados é contra a descriminalização. A crise política de 2014 e o governo Temer também impactaram a pauta de direitos sexuais e reprodutivos, com o rebaixamento do Ministério da Mulher para uma secretaria, chefiada por Fatima Pelaes, contrária à descriminalização do aborto.

3.1 O Aborto como Crime no Código Penal Brasileiro e o Início do Debate sobre Descriminalização

A seção discute a legislação brasileira sobre aborto, presente no Código Penal desde 1940, que o caracteriza como crime, exceto em casos de estupro, risco de vida para a mulher e anencefalia. O debate sobre a descriminalização começou entre as décadas de 1940 e 1970, mas ganhou força política após a redemocratização, impulsionado pelo aumento da participação feminina no Congresso (Miguel, 2017) e pela reação conservadora de grupos religiosos. A pesquisa de Rogério Barros Sganzerla (2008) revela que, de 129 projetos de lei analisados, apenas 25 tratavam de políticas específicas para mulheres, indicando um grande interesse do Congresso Nacional em manter as leis existentes. Sganzerla destaca a correlação entre o aumento da representação feminina no Poder Legislativo (de 1 deputada em 1971 para 47 deputadas e 10 senadoras em 2011) e o aumento de projetos de lei favoráveis à descriminalização. A análise destaca a influência da crise política de 2014, do impeachment da presidente Dilma Rousseff e a nomeação de Michel Temer, que relegou as pautas sobre direitos sexuais e reprodutivos a segundo plano, com o rebaixamento do Ministério da Mulher para uma secretaria sob o comando de Fatima Pelaes, uma ex-deputada evangélica contrária às pautas feministas.

3.2 Projetos de Lei e a Posição da Câmara dos Deputados

A seção analisa a situação dos projetos de lei relacionados ao aborto no Congresso Nacional. A pesquisa de Sganzerla (2008) aponta que a discussão no Congresso se concentra no aspecto criminal do aborto, principalmente nas Comissões de Justiça. De um total de 129 projetos de lei analisados, apenas 25 abordam políticas específicas para mulheres, sugerindo um forte interesse na manutenção do status quo legal. O autor relaciona o aumento de projetos de lei a favor da descriminalização ao crescimento da representação feminina no Poder Legislativo. O aumento de deputadas e senadoras, embora significativo, não se traduziu em mudanças significativas na legislação. A análise contextualiza esses dados com a crise política de 2014, o impeachment de Dilma Rousseff e a ascensão de Michel Temer, que priorizou outras pautas em detrimento dos direitos sexuais e reprodutivos. A nomeação de Fatima Pelaes, ex-deputada evangélica e defensora do direito à vida, para a Secretaria da Mulher, demonstra uma postura contrária às pautas feministas e à descriminalização do aborto. Essa seção demonstra a complexa interação entre a legislação, o ativismo político e o poder executivo no contexto do debate sobre o aborto no Brasil.

IV.Audiências Públicas e Análise do Discurso

O estudo utiliza a análise de discurso (AD) em audiências públicas no Supremo Tribunal Federal (STF) como metodologia principal. Foram analisados 54 discursos, com foco nos argumentos científicos, jurídicos e religiosos. A pesquisa indica que, entre os especialistas, a maioria é favorável à descriminalização do aborto. Dados apresentados pelo Ministério da Saúde apontam números alarmantes de complicações e mortalidade materna devido a abortos clandestinos. Especialistas em saúde reprodutiva enfatizam a segurança do aborto quando realizado por profissionais qualificados, contrastando com os riscos associados aos procedimentos clandestinos.

4.1 Metodologia Análise de Discurso das Audiências Públicas no STF

A pesquisa utiliza a Análise de Discurso (AD) como metodologia principal, analisando as transcrições das audiências públicas sobre descriminalização do aborto realizadas no Supremo Tribunal Federal (STF) em agosto de 2018. O corpus do estudo compreende 54 discursos de representantes, especialistas e convidados, excluindo aqueles em língua estrangeira por falta de tradução oficial. Os discursos foram categorizados de acordo com o argumento principal, divididos em categorias científicas, jurídicas e religiosas. A escolha da AD se justifica pelo interesse na fala e no falante, buscando entender o processo de constituição do sujeito, com base nas ideias de Foucault. A obra de Foucault, 'A Ordem do Discurso' (1959), é referenciada para mostrar o discurso como força social histórica, atuando sobre a fala e o sujeito, buscando compreender a construção de objetos e sujeitos do saber. A análise busca entender o contexto e o significado dos posicionamentos assumidos, considerando que o discurso articula saber e poder, refletindo a tentativa de manutenção ou mudança da ordem vigente, no caso da ADPF 442.

4.2 Dados e Argumentos Apresentados nas Audiências Públicas

As audiências públicas apresentaram dados alarmantes sobre as consequências da criminalização do aborto: 50.000 complicações graves e 2.000 mortes nos últimos 10 anos, segundo o Ministério da Saúde. O aborto seguro foi apresentado como um procedimento de saúde para mulheres, com Dr. Rosires Pereira de Andrade, da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, defendendo a segurança do aborto nas primeiras semanas quando realizado corretamente. A criminalização é criticada por impedir o atendimento adequado a mulheres que buscam ajuda médica, ferindo o Código de Ética da Medicina e a relação de confiança médico-paciente. A legalização do aborto como procedimento seguro e de baixo custo seria essencial para reduzir internações e mortalidade materna. A descriminalização, combinada com o planejamento familiar, poderia evitar o distanciamento das mulheres dos serviços de saúde, permitindo entender as circunstâncias das gestações indesejadas e evitar novas recorrências ao aborto. A representante do Instituto Baresi, Adriana Abreu Magalhães Dias, destacou a vulnerabilidade de mulheres com deficiência, que sofrem dupla discriminação e falta de acesso à saúde. O alto índice de gravidez indesejada, com consequências como depressão pós-parto, também foi citado por Mariza Theme-Filha.

4.3 Análise dos Argumentos Científicos Jurídicos e Religiosos

A análise dos discursos identificou a recorrência de argumentos tanto a favor quanto contra a descriminalização, com diferentes ênfases. A autonomia da mulher em relação ao próprio corpo foi um argumento central para os favoráveis à descriminalização, enquanto a inviolabilidade da vida foi um argumento recorrente para a oposição. Os argumentos científicos buscaram justificar as posições usando dados científicos, frequentemente discutindo o início da vida. A ausência de consenso científico sobre o início da vida foi ressaltada, com menção à resolução da Academia Nacional de Medicina dos Estados Unidos. A pesquisa de Débora Diniz (2010) é citada para mostrar que 1 em cada 5 mulheres brasileiras já realizou um aborto, com as mulheres mais vulneráveis (negras, jovens, de classes baixas) sendo as mais afetadas pela falta de acesso a procedimentos seguros. A representante do Coletivo Margaridas, Fernanda Lopes, apresentou dados do IBGE confirmando a maior incidência de abortos em mulheres negras do Nordeste, Norte e Centro-Oeste, áreas com maior dificuldade de acesso à saúde. A análise jurídica destacou a violação de princípios constitucionais e de direitos humanos pela criminalização do aborto, enquanto argumentos religiosos enfatizavam a inviolabilidade da vida e princípios morais.

V.Argumentos a Favor e Contra a Descriminalização

Os argumentos a favor da descriminalização enfatizam a autonomia da mulher, a saúde pública, e a redução da mortalidade materna. Argumentos contra a legalização do aborto se baseiam na inviolabilidade da vida e em crenças religiosas. O debate envolve a questão do início da vida, com divergências sobre se o feto possui direitos desde a concepção. A questão social da pobreza, da violência e da falta de acesso à contracepção também são abordadas como fatores relevantes no contexto do aborto no Brasil.

5.1 Argumentos a Favor da Descriminalização Autonomia Saúde Pública e Direitos Humanos

Os argumentos a favor da descriminalização do aborto enfatizam a autonomia da mulher sobre o próprio corpo, apresentando-a como um direito fundamental. Este argumento radical não coloca a mulher no mesmo patamar que a defesa do embrião. A ênfase na saúde pública destaca a realidade de mulheres que realizam abortos ilegais em condições de risco, com maior impacto sobre as mulheres mais pobres. O número de mortes maternas devido a abortos clandestinos é apresentado como evidência inquestionável de um problema de saúde pública que exige solução. A discussão também envolve os direitos humanos das mulheres, argumentando que a criminalização viola direitos à autonomia e dignidade. A defesa da laicidade é levantada contra a interferência religiosa nas políticas públicas. Representantes de grupos como o Coletivo Margaridas apontam a discriminação contra mulheres negras e pobres e a necessidade de garantir os direitos reprodutivos como parte integral dos direitos humanos. A falta de acesso a métodos contraceptivos e a informação também são mencionados como fatores que contribuem para o aumento de abortos.

5.2 Argumentos Contra a Descriminalização Inviolabilidade da Vida e Argumentos Religiosos

Os argumentos contrários à descriminalização do aborto se centram na inviolabilidade da vida, considerando o feto como uma pessoa humana desde a concepção. Este argumento é fortemente embasado em crenças religiosas, utilizando-se de conceitos como a santidade da vida e a moralidade cristã. A influência da Igreja Católica e de outras igrejas evangélicas é evidente neste posicionamento. A inviolabilidade da vida é apresentada como um direito superior a outros direitos, incluindo o da autonomia da mulher, com alegações de que a descriminalização seria uma sentença de morte para o feto. A comparação com países desenvolvidos que legalizaram o aborto é criticada, argumentando que cada país tem suas características específicas e que a realidade brasileira não pode ser simplesmente ignorada. A preocupação com o aumento de abortos seletivos, como os eugênicos, também é mencionada. A falta de responsabilidade dos pais é apontada como um problema a ser resolvido com políticas públicas que melhorem as condições sociais, em vez da descriminalização do aborto, que seria vista como uma forma de controle de natalidade. A ONG Invisible Girl é citada, apresentando dados sobre o aumento alarmante de abortos de meninas em alguns países. Também há menções ao número de fetos abortados com Síndrome de Down em países com aborto legalizado.