O direito à verdade sob a óptica da obra "1984" de George Orwell

Direito à Verdade em 1984

Informações do documento

Autor

Athena De Oliveira Nogueira Bastos

Escola

Universidade Federal De Santa Catarina

Curso Direito
Tipo de documento Trabalho De Conclusão De Curso
instructor Professor Luis Carlos Cancellier
Idioma Portuguese
Formato | PDF
Tamanho 1.26 MB

Resumo

I.A Relação entre Direito e Literatura Uma Abordagem Metodológica

Este trabalho de conclusão de curso investiga o Direito à Verdade, analisando a obra '1984' de George Orwell como lente para compreender a manipulação da verdade e sua relação com o totalitarismo. A metodologia se baseia na intersecção entre direito e literatura, explorando conceitos como 'direito como literatura' e 'direito na literatura', com autores como John Wigmore e François Ost fornecendo perspectivas sobre a linguagem jurídica e sua influência na construção social. A pesquisa analisa como o discurso jurídico contribui para a 'mágica social', questionando se o direito pode ser considerado literatura, segundo a visão de autores como Terry Eagleton. A obra de Ost, 'Contar a Lei', é utilizada para entender o direito como narrativa e construção de realidade, enquanto o trabalho de Ronald Dworkin sobre a 'integrity' do direito é analisado. A contribuição de Wigmore, pioneiro nos estudos do direito na literatura, é fundamental para o estudo. Ele defendia que a literatura amplia a compreensão jurídica, permitindo aos juristas uma abordagem mais humana e comparativa do direito.

1. Direito e Literatura Uma Intersecção Metodológica

O estudo inicia explorando a relação entre direito e literatura como método de análise para o Direito à Verdade. A pesquisa busca compreender a importância dessa intersecção, analisando os conceitos de 'direito como literatura' e 'direito na literatura', e as implicações de cada um. Autores relevantes para essa discussão são citados, como François Ost, cuja obra 'Contar a Lei: Fontes do Imaginário Jurídico' contribui para a compreensão do direito como discurso e narrativa que legitima e limita o poder. A análise da obra de Ost explora a construção social por meio de interlocuções jurídicas e a eficácia da linguagem jurídica em impor preceitos. A questão de se o direito pode ser considerado literatura é debatida com base na concepção clássica de literatura e em abordagens mais contemporâneas, com menção a Terry Eagleton. A pesquisa também explora a teoria de Ronald Dworkin sobre a 'integrity' do direito, comparando a escrita jurídica à construção de um romance, com a busca de coerência narrativa e fidelidade à história moral da comunidade. Assim, busca-se uma abordagem multifacetada do direito através de lentes literárias.

2. A Contribuição de John Wigmore para a Relação Direito e Literatura

A pesquisa destaca a contribuição fundamental de John Wigmore para o estudo do direito na literatura. Considerado um estudioso do direito norte-americano, conhecido por seus trabalhos sobre provas judiciais, Wigmore já utilizava obras literárias, inclusive a Bíblia, para fundamentar suas análises críticas. Seus estudos criticavam a concessão do poder de julgar fatos e direitos à massa, argumentando que o direito é complexo e a função judicante não deve ser submetida ao clamor público. Wigmore defendia a importância da literatura para o aprofundamento do conhecimento jurídico, propondo que advogados que se dispusessem a ler textos literários com teor jurídico, além de conhecerem a história da profissão, poderiam contribuir para uma cultura normativa comparatista. A literatura, segundo Wigmore, descreve diversos tipos sociais, aproximando o jurista dos sujeitos e dos problemas jurídicos, como narrados em obras literárias. Wigmore elaborou inclusive uma lista de obras e autores importantes para a formação jurídica, com uma classificação de romances com teor jurídico, dividindo-os em classes A, B, C e D, com base em critérios específicos, como a presença de julgamentos, descrições de atividades profissionais, métodos de processamento e punição de crimes, e abordagem de direitos e condutas dos personagens. Sua contribuição é relevante para auxiliar os juristas na busca de conhecimento através da literatura, dado a impossibilidade de leitura de todas as obras relevantes.

3. A Literatura como Ferramenta para a Compreensão Jurídica

Além da contribuição de Wigmore, o texto analisa como a literatura pode auxiliar na compreensão do Direito. A pesquisa argumenta que a literatura apresenta situações estranhas ao leitor, permitindo a compreensão de diferentes interpretações e percepções sobre a atuação e a postura dos profissionais do direito, bem como sobre novos entendimentos sociais das normas jurídicas. A literatura oferece oportunidades de comparar interpretações de textos baseados no sistema legal por autores diferentes e personagens variados, em circunstâncias diversificadas, conforme a época e o contexto. A perspectiva de um romance com fundo jurídico, na visão de Wigmore, seria aquele voltado para conhecedores do direito, cujo enredo se basearia em princípios da profissão jurídica. A utilização da literatura como instrumento de compreensão jurídica não é vista como inferior ao conhecimento aplicado diretamente na prática, principalmente no contexto brasileiro onde há uma forte tradição de usar o direito para alcançar conhecimento das ciências humanas e da política.

II.George Orwell e a Obra 1984 Um Retrato do Totalitarismo

Publicado em 1949, após a Segunda Guerra Mundial, '1984' reflete o contexto histórico de ascensão e queda de regimes totalitários, como o nazismo e o stalinismo, e a polarização ideológica entre capitalismo e socialismo. A obra, segundo Eric Fromm, é uma advertência sobre as consequências da conduta humana e a manipulação da memória coletiva. Orwell critica o controle do passado e a manipulação da verdade como ferramentas de dominação política, exemplificado pela Oceania, um Estado totalitário liderado pelo Grande Irmão. O estudo contextualiza '1984' no período pós-Segunda Guerra, destacando o pessimismo sobre o futuro da humanidade em face das atrocidades cometidas em nome do progresso, comparando-o com outras distopias como 'Admirável Mundo Novo' e 'Nós'. A análise da vida de Orwell, sua experiência na Guerra Civil Espanhola e seu contato com o P.O.U.M., ilumina sua visão crítica sobre o totalitarismo e o capitalismo.

1. 1984 Contexto Histórico e Ideológico

Publicado em 1949, '1984', de George Orwell, é analisado sob a ótica do contexto histórico pós-Segunda Guerra Mundial. O período é caracterizado por uma batalha ideológica entre capitalismo e socialismo, e pela ascensão de regimes totalitários que empregavam teses contraditórias, criando uma discrepância entre teoria e realidade. Eric Fromm, no posfácio da obra, destaca o sentimento de desesperança contrastando com a fé no progresso humano, característica fundamental do pensamento ocidental. A obra é situada no período posterior ao que Tzvetan Todorov considera o apogeu dos totalitarismos (1939-1941), marcado por acordos entre a União Soviética e a Alemanha Nazista para dividir a Europa e pelo subsequente ataque alemão à Rússia. O período também se caracteriza pelo desenvolvimento de armas de destruição em massa, como a bomba atômica, reforçando a busca por poder e domínio através da força militar. As reflexões de Hobsbawm sobre os interesses do Japão e da Alemanha, que buscavam guerras rápidas e ofensivas devido à superioridade dos recursos dos seus inimigos potenciais, complementam a análise do contexto bélico e político da época, contrastando com a estratégia britânica de investimento em armamentos de longo prazo. A Grande Depressão e o desemprego em massa contribuíram para a instabilidade política e social.

2. Orwell e o Totalitarismo Uma Crítica Através da Ficção

A análise da obra '1984' se estende para uma discussão da visão de Orwell sobre o totalitarismo. Eric Fromm argumenta que a obra não é uma previsão, mas um alerta sobre as consequências das ações humanas diante das barbáries do século XX. A insensibilidade moral da Primeira Guerra Mundial e eventos subsequentes, como a traição das esperanças socialistas pelo capitalismo estatal de Stalin, a crise econômica de 1920, o nazismo, o terror stalinista, a Segunda Guerra Mundial e o uso de bombas atômicas, são apontados como fatores que contribuíram para um pessimismo generalizado e o surgimento de obras distópicas. O texto destaca que Orwell critica não apenas o stalinismo, mas os regimes totalitários em geral, inclusive no Ocidente capitalista. A identificação do 'Grande Irmão' com Stalin não deve obscurecer a crítica mais ampla a regimes totalitários semelhantes em diversas partes do mundo, incluindo a América do Sul, e as ditaduras de Franco e Salazar. A experiência pessoal de Orwell, como descrito em suas cartas, incluindo seu envolvimento com o P.O.U.M. na Guerra Civil Espanhola e suas críticas à imprensa britânica e ao governo britânico, reforçam a crítica à manipulação da informação e a luta contra o fascismo e o capitalismo.

3. 1984 O Domínio sobre a Realidade e a Manipulação do Passado

'1984' explora a capacidade humana de dominação por meio da guerra e da manipulação da verdade. A obra questiona a natureza da verdade e sua fragilidade, mostrando que a realidade é construída pela subjetividade do Partido, o qual determina o que é ou não verdade. A imposição da verdade pelo partido, mesmo que inválida, torna-se predominante através do silenciamento da minoria discordante, rotulando-a como insana. O controle do passado pelo Partido é central, com a manipulação de registros e a alteração contínua da história. Winston Smith, como funcionário do Ministério da Verdade (Miniver), representa o dilema do indivíduo em um regime totalitário. A repetição de slogans como 'guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força' reforça a capacidade do Partido em controlar a mente da população. A obra ilustra a manipulação da opinião pública através da imprensa, do cinema e do rádio, demonstrando o erro das tiranias passadas em ignorar os pensamentos dos súditos e a eficácia da vigilância constante e da supressão de informações para manter o poder. A busca de Winston por fontes confiáveis de informação, revelando a manipulação do passado e o conceito de 'negribranco' que permite a distorção da realidade, ilustra o objetivo central da obra em apontar os perigos do controle totalitário sobre a verdade.

III.O Direito à Verdade e Suas Implicações Uma Análise Filosófica e Jurídica

A seção examina o conceito de verdade, explorando diferentes perspectivas filosóficas: a alethéia (descoberta da verdade), a veritas (precisão), e a emunah (confiança). A obra cita a célebre pergunta de Pilatos, “o que é a verdade?”, destacando a tensão entre verdade e poder político. A análise da manipulação da verdade, explorando conceitos da obra de Hannah Arendt, destaca a mentira como ferramenta política, enfatizando a dificuldade de combater a mentira organizada. O estudo discute a importância da busca pela verdade fatual em contraponto à desinformação, crucial para a construção de uma memória coletiva autêntica. A Comissão Nacional da Verdade no Brasil serve como exemplo prático da busca pela verdade após a superação de um regime autoritário. A pesquisa analisa o Direito à Verdade como um direito fundamental, considerando seus limites e a necessidade de acesso à informação para uma sociedade democrática, incluindo referências às Convenções de Genebra e o Protocolo Adicional I. A importância do luto coletivo como processo de superação de traumas históricos e construção de identidade nacional também é abordada.

1. Concepções Filosóficas de Verdade

A seção inicia com a questão da verdade, questionando sua natureza e existência, iniciando com a famosa indagação de Pilatos: "O que é a verdade?" (Jo 18,28). A discussão se aprofunda explorando diferentes concepções filosóficas de verdade: a aletheia (descoberta da verdade), a veritas (precisão, concordância com regras e princípios internalizados), e a emunah (confiança, cumprimento de pactos). A verdade como aletheia se encontra no exterior, enquanto a veritas reside no interior do sujeito. A emunah pressupõe uma convenção a ser respeitada. A mentira é apresentada como o oposto da verdade fatual, atuando para anular os limites entre verdade e opinião. A ação de contar a verdade torna-se política no momento em que a mentira é assimilada pela sociedade e se torna uma 'falsa verdade'. A dificuldade de estabelecer a verdade em contraste com a facilidade de manipulação da mentira é analisada, com a mentira organizada buscando eliminar vestígios de verdade, segundo a perspectiva de Hannah Arendt. A desconfiança em fontes de informação e a confusão entre verdade e opinião são apontadas como fatores que contribuem para a aceitação da mentira. A saída proposta é através do esforço de pesquisa, indagação e comparação para se alcançar a verdade fatual, uma vez que os fatos em si são inalteráveis.

2. Verdade Política e o Direito à Informação

A manipulação da verdade e o controle da memória são analisados como atos políticos. A seção discute a importância da verificação da veracidade das narrativas que contam o que ocorreu e o porquê. A negação ou alteração da informação viola o direito fundamental à informação e ao conhecimento, essencial para o exercício da cidadania. A aceitação da manipulação dos fatos leva à construção de uma memória distorcida e à vulnerabilidade a erros irreparáveis. A preservação da memória como forma de superação dos traumas do passado e prevenção de violências futuras é enfatizada. Rogério Gesta Leal destaca a importância da conexão entre presente e passado, considerando que o sujeito do presente é definido pela tradição. A obra também cita a importância da memória coletiva para a construção de uma identidade e para evitar a anomia. François Ost é citado, destacando a memória como uma construção ativa e normativa, partindo do presente e suas questões, incluindo o esquecimento como parte integrante do processo. A impossibilidade de apagar completamente o passado, mesmo com a manipulação da informação, é apontada como uma constante. A busca pela verdade, individual e coletiva, é fundamental para a formação de uma identidade forte e para o desenvolvimento de uma democracia, estimulando o sentimento de agregação e respeito mútuo.

3. Direito à Verdade Conceito Limites e Aplicações

O Direito à Verdade é definido como o direito de conhecer e formar uma noção de verdade sobre fatos e coisas, através de informações integrais e acessíveis. Entretanto, esse direito encontra limites nas esferas individuais, como intimidade, vida privada, imagem e honra. A relevância da discussão sobre o direito coletivo à informação influencia na definição desses limites; quanto maior a necessidade de esclarecimento de fatos sociais e políticos, menos rígidos se tornam. As Comissões da Verdade, instaladas em diversos países após a superação de regimes autoritários, exemplificam a busca pela verdade fatual, como conceituada por Hannah Arendt. A primeira referência normativa ao direito à verdade surge em 1949, nas Convenções de Genebra, com regras sobre registro e fornecimento de informações a vítimas de conflitos armados. Em 1977, o Protocolo Adicional I às Convenções de Genebra normatiza o direito de saber o que ocorreu, principalmente para famílias com membros desaparecidos. A Comissão Nacional da Verdade no Brasil é reconhecida por seu papel fundamental na construção de uma nova identidade coletiva, mas a plena satisfação da sociedade requer o acesso irrestrito a documentos do período ditatorial, cuja negativa configura violação ao direito à informação.