
Letramento: Vozes Sociais na Não-Pessoa
Informações do documento
Autor | Vanda Mari Trombetta |
instructor/editor | Manoel Luiz Gonçalves Corrêa (Orientador) |
Escola | Universidade de São Paulo (USP), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas |
Curso | Letras |
Tipo de documento | Tese de Doutorado |
Local | São Paulo |
Idioma | Portuguese |
Formato | |
Tamanho | 2.00 MB |
Resumo
I.O Terceiro Elemento na Enunciação Uma Abordagem Bakhtiniana da Referência e Referenciação em Redações de Vestibular
Esta pesquisa investiga a construção do objeto de discurso em 264 redações da Fuvest de 2006, com o tema "trabalho", utilizando a Análise do Discurso com foco na teoria de Bakhtin e do Círculo. O estudo centra-se na influência de um "terceiro elemento" na enunciação: a interação com o "já-dito" (vozes sociais), além do locutor (escrevente) e do destinatário (banca corretora, mas também considerando o sobredestinatário). A análise explora como as vozes sociais - provenientes de diferentes esferas de conhecimento (letramento formal e informal) - se manifestam e contribuem para a construção do significado do trabalho nas redações. A pesquisa busca ir além das abordagens tradicionais de referenciação, considerando a dimensão dialógica da linguagem e o impacto das experiências de letramento do escrevente na construção textual.
1. O Conceito de Já dito e a Terceira Voz na Construção do Objeto de Discurso
A seção inicial define o ponto central da pesquisa: a influência do 'já-dito' – um terceiro elemento, uma terceira voz, proveniente de discursos sociais pré-existentes – na construção do objeto de discurso. A perspectiva bakhtiniana é fundamental, concebendo o discurso não como um ato individual, mas como uma resposta dialógica a interlocutores e a esse 'já-dito'. O objeto de discurso, portanto, é visto como um produto da interação entre o escrevente, o(s) destinatário(s) e as vozes sociais presentes no 'já-dito', que se manifestam como marcas no texto e o constituem. A análise se concentra nas redações de vestibular como um espaço privilegiado para observar essa interação, identificando as vozes presentes nos textos dos vestibulandos e relacionando-as às práticas letradas às quais tiveram acesso. O arcabouço teórico se baseia na análise dialógica de Bakhtin, na argumentação (Perelman e Olbrechts-Tyteca), nas teorias do letramento (Street) e no paradigma indiciário (Ginzburg), buscando desvendar fenômenos que mobilizam o aparecimento de indícios nos textos, ligados à situação enunciativa imediata e a elementos estabilizados historicamente.
2. A Referenciação como Construção Discursiva Além da Negociação Intersubjetiva
Esta parte discute a natureza da referenciação, discordando da visão de que ela é exclusivamente fruto de uma negociação intersubjetiva no momento da interação. O texto argumenta que a referenciação é um processo dialógico mais amplo, incluindo a apropriação de modos de referir preexistentes no universo social ('interdiscurso', Possenti; estabilidade relativa em grupos sociais, Alves Filho). A influência do contexto histórico e social é enfatizada, mostrando que os interlocutores não são totalmente livres na produção do discurso. A análise crítica de autores como Mondada e Dubois, que defendem a construção da referência na interação, é apresentada, mas contraposta à ideia de que a construção do objeto de discurso vai além da negociação imediata entre falantes. A perspectiva bakhtiniana, com sua ênfase no diálogo e na influência do 'já-dito', é fundamental para entender como a referenciação se constrói.
3. O Diálogo entre Eu e Você Sujeitos Sociais e Históricos na Interação
A seção aborda a interação entre o 'eu' e o 'você' em Bakhtin, entendidos como sujeitos sociais e históricos. A pesquisa, com seu corpus de redações de vestibular, ilustra essa dinâmica, analisando a interação entre o candidato (escrevente) e a banca corretora. As posições enunciativas no texto refletem os múltiplos espaços sociais que constituem o escrevente. A discussão se aproxima da concepção de Faraco sobre o autor-criador, que destaca e reorganiza aspectos da vida, criando personagens com 'voz social', e de Brait, que argumenta pela autonomia da personagem em relação ao autor. O conceito de 'mundo representante' e 'mundo representado' (Bakhtin) é aplicado à análise, mostrando a influência do contexto histórico e social na construção de significados. A estratificação da língua, influenciada por fatores como gênero e profissão, é discutida, com ênfase na força do gênero do discurso em moldar as escolhas linguísticas.
4. Enunciação Já dito e Gênero do Discurso A Construção Dialógica do Sentido
Nesta parte, a enunciação é compreendida como um evento que ocorre dentro de uma esfera comum da comunidade verbal, moldado pelos gêneros do discurso. A relação estreita entre modos de dizer e atividades humanas é explorada, com exemplos que vão de diálogos face a face a obras literárias. A noção de esfera de atividade humana (Bakhtin) é crucial para compreender a estabilidade relativa dos gêneros discursivos em termos temáticos, composicionais e estilísticos. A enunciação não se limita ao momento da fala/escrita, mas se relaciona com enunciados anteriores e posteriores, mostrando-se como um elo em uma cadeia infinita. A analogia de Bakhtin/Voloshinov entre enunciação e ilha no oceano do 'já-dito' ilustra a contínua interação dialógica na linguagem. A construção do sentido é analisada levando-se em conta os aspectos extraverbais (espaço, tempo, posição dos interlocutores) e a influência das vozes sociais.
5. A Alteridade e o Sobredestinatário Implicações para a Interação
A seção discute a alteridade na concepção discursiva de Bakhtin, focando nos destinatários (imediatos, presumidos e sobredestinatários). O sujeito, ao organizar vozes sociais no discurso, não tem controle total sobre elas, pois o 'já-dito' traz consigo ideias e posicionamentos pré-existentes. A noção de alteridade desconstroi a ideia de consciência plena, pois a palavra é um evento social. A pesquisa considera as implicações do sobredestinatário na interação, citando Midgley, Henderson e Danaher e a pesquisa de Bryzzheva sobre o papel de apoio do sobredestinatário para professores. O conceito de sobredestinatário é então associado à esperança no diálogo, considerando que mesmo com interlocutores que utilizam palavras semelhantes, podem haver significações diferentes para um mesmo enunciado. A palavra, portanto, pode transcender o contexto de sua criação.
II.Letramento Plural e a Construção do Objeto de Discurso Trabalho
A pesquisa se apoia nos Novos Estudos do Letramento, reconhecendo a pluralidade de letramentos (formal e informal) que influenciam a escrita dos vestibulandos. Os autores Kleiman, Soares, Tfouni, Rojo, Gee, Heath, Street, Barton e Hamilton são referenciados para embasar a compreensão do letramento como um processo social complexo, não limitado à escola. O estudo analisa como as experiências de letramento em diferentes espaços sociais (família, trabalho, religião, mídia) se manifestam nas redações, criando uma interação entre vozes sociais formais e informais na construção do objeto de discurso "trabalho".
1. Novos Estudos do Letramento e a Abordagem da Pesquisa
Esta seção contextualiza a pesquisa dentro dos Novos Estudos do Letramento (NEL), destacando a influência de autores como Gee, Heath, Street, Barton e Hamilton, que enfatizam a dimensão social do letramento, contrapondo-se a abordagens tradicionais mais psicológicas. A pesquisa aborda o letramento como um fenômeno multifacetado, construído em diferentes espaços sociais e práticas de leitura e escrita. O foco está na superação de uma visão limitada do letramento como mera decodificação, enfatizando, ao contrário, a construção de identidades e a negociação de posições pelos sujeitos nas diferentes práticas letradas. A citação de Cerutti-Rizzatti (2009, 2012) sobre a convergência dos estudiosos dos NEL em relação a uma visão compartilhada sobre o letramento ressalta a importância da dimensão social e prática na construção do conhecimento e das habilidades de leitura e escrita. A pesquisa se alinha a essa perspectiva, examinando a construção do objeto de discurso ‘trabalho’ nas redações de vestibular a partir dessa ótica plural do letramento.
2. Letramento Formal e Informal Agências e Práticas
A discussão se aprofunda na distinção entre letramentos formal e informal, citando autores como Street, Rojo e Tfouni. Street defende a possibilidade dos sujeitos rejeitarem e negociarem posições dentro das práticas de letramento, enfatizando o papel ativo do sujeito na construção de sua identidade em diferentes contextos, indo além de uma simples recepção passiva da ideologia dominante. Rojo destaca a existência de diversas agências de letramento, como família, igreja e sindicatos, além da escola, que contribuem para o desenvolvimento de capacidades de leitura e escrita, com base em pesquisas de Scribner e Cole (1981). Tfouni, por sua vez, argumenta que mesmo indivíduos sem alfabetização formal possuem um conhecimento da escrita decorrente da imersão em uma sociedade letrada. Esse conceito de letramento plural é fundamental para a análise das redações, pois permite a observação de como as experiências dos escreventes em diversos espaços sociais (além da escola) se manifestam na produção escrita, revelando uma interação entre saberes formais e informais na construção do objeto do discurso ‘trabalho’.
3. Letramento Formal e Informal Indícios de Circulação e Diálogo
Este sub-tópico explora a metodologia de análise, que se baseia na identificação de ‘indícios’ (Ginzburg) presentes nas redações, revelando a circulação entre práticas de letramento formal e informal. O texto argumenta que a produção escrita dos vestibulandos não se limita ao espaço escolar, refletindo experiências letradas em diferentes contextos sociais. A análise busca identificar esses indícios de um processo de circulação entre letramentos formais e informais, demonstrando o diálogo do escrevente com diversas vozes sociais. A perspectiva metodológica se assenta na análise discursiva, partindo da premissa de que o texto escrito não é apenas produto de uma situação imediata, mas resultado de um processo dialógico mais amplo, influenciado pelas experiências de letramento do escrevente em diferentes esferas da vida, conforme demonstrado por Corrêa (2011).
III.A Argumentação na Perspectiva da Nova Retórica e a Análise do Discurso
Este eixo analisa a argumentação presente nas redações, combinando a teoria da Nova Retórica de Perelman e Olbrechts-Tyteca com a Análise do Discurso bakhtiniana. A pesquisa investiga como os vestibulandos constroem seus argumentos, considerando a interação com diferentes auditórios (banca corretora, família, comunidade de trabalhadores, o próprio escrevente como auditório). A análise examina a formação da comunidade de espíritos, as estratégias argumentativas, e como o "já-dito" influencia a construção de diferentes posições enunciativas e vozes sociais no texto. Conceitos como entimema e auditório universal são explorados.
1. A Nova Retórica e a Análise da Argumentação Uma Abordagem Dialógica
Esta seção estabelece o diálogo entre a teoria da Nova Retórica de Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) e a Análise do Discurso de Bakhtin. A Nova Retórica é utilizada como referencial teórico para a análise da argumentação nas redações de vestibular, complementando a perspectiva bakhtiniana. O objetivo é caracterizar a construção do objeto de discurso ‘trabalho’ e as mudanças de argumentos, decorrentes da recuperação do ‘já-dito’ e das relações de alteridade. A análise se concentra em pontos específicos de convergência entre as duas teorias, como o entimema, a constituição da comunidade de espíritos, a alteridade e o argumento como réplica a um ‘já-dito’. A pesquisa reconhece a importância da alteridade para a interação, mas destaca a diversidade dessa alteridade nas duas teorias, resultando numa releitura da formação da comunidade de espíritos em consonância com a perspectiva bakhtiniana.
2. Raciocínio Dialético versus Raciocínio Analítico Ciência Exata e Ciência Humana
A seção compara o raciocínio analítico/demonstrativo das ciências exatas com o raciocínio dialético das ciências humanas, buscando convergências com as ideias de Bakhtin. Bakhtin caracteriza as ciências exatas como formas monológicas de saber, onde o intelecto contempla um objeto ‘mudo’ e emite enunciados sobre ele. Em contraponto, as ciências humanas abordam o objeto de pesquisa como dialógico, exigindo uma conversa com o objeto, e não apenas um discurso sobre ele. Essa distinção é reforçada por Lemos (2011), que contrapõe a relação com objetos ‘mudos’ à relação com ‘objetos falantes’. O raciocínio dialético é associado a um ‘grande debate filosófico’, que se configura na existência de uma pluralidade de sujeitos racionais e na diversidade de abordagens para os problemas. A liberdade humana, neste contexto, é compreendida como ‘uma liberdade situada’, relacionada a concepções e valores admitidos, em contraste com o raciocínio analítico.
3. O Auditório Universal e Particular na Construção Argumentativa
Esta parte discute a construção do auditório na perspectiva de Perelman e Olbrechts-Tyteca, considerando o conhecimento ‘presumido’ do auditório, que é heterogêneo e não facilmente identificável. O orador, portanto, pode ter diferentes pontos de partida, levando em conta as características sociais do auditório. A noção de auditório universal é analisada, com base nas reflexões de Grácio (1993) sobre a obra de S. Tomás de Aquino, mostrando como a argumentação pode buscar a adesão de um público amplo sem apelar para crenças e valores específicos, recorrendo à razão. A pesquisa distingue entre argumentação para um auditório universal (busca-se consenso através da demonstração) e para um auditório particular (busca-se adesão por persuasão). Nas redações analisadas, são identificados ambos os tipos de auditório: o especializado (banca corretora) e o universal (público mais amplo).
IV.O Paradigma Indiciário e a Análise dos Textos
A metodologia emprega o paradigma indiciário, inspirado em Ginzburg, para identificar os indícios da interação dialógica e das vozes sociais presentes nas redações. A pesquisa busca desvendar como os detalhes aparentemente menores nos textos revelam as experiências de letramento e a construção do objeto de discurso "trabalho". A análise se concentra em como os indícios materiais nos textos refletem o diálogo entre o escrevente, o(s) destinatário(s) e as vozes sociais do "já-dito", construindo diferentes sentidos para o conceito de trabalho.
1. O Paradigma Indiciário Conceito e Aplicação na Análise Textual
Esta seção apresenta o paradigma indiciário, proposto por Ginzburg, como a base metodológica para a análise das redações. O paradigma indiciário, que se baseia na interpretação de indícios e pistas sutis, é apresentado como uma ferramenta adequada para desvendar as complexas relações dialógicas presentes nos textos. O texto argumenta que, assim como um detetive busca pistas para reconstruir um crime, o analista de discurso utiliza o paradigma indiciário para extrair informações implícitas, decodificando as 'marcas' deixadas pelas vozes sociais e a relação do escrevente com o já-dito. A escolha por este método justifica-se pela necessidade de ir além da superfície textual, explorando as nuances da construção do discurso e as influências da história de letramento do escrevente. A menção ao método morelliano, utilizado por Morelli para a análise de obras de arte e posteriormente comparado com os métodos de Sherlock Holmes e Freud por Ginzburg, ilustra a aplicabilidade do paradigma indiciário em diferentes áreas.
2. O Paradigma Indiciário e a Semiótica Médica Analogias e Paralelos
A seção aprofunda a discussão sobre o paradigma indiciário, explorando suas conexões com a semiótica médica. Ginzburg, ao notar que Morelli, Doyle (criador de Sherlock Holmes) e Freud eram médicos, propõe a existência de traços da semiótica médica no paradigma indiciário. Essa hipótese é reforçada pela argumentação de Nöth (1995), que vê na medicina a ancestralidade da semiótica, dada a sua natureza de estudo diagnóstico de signos (doenças). O paralelo entre o diagnóstico médico e o paradigma indiciário reside na busca por sinais e pistas menos visíveis, que revelam informações importantes sobre o objeto investigado. O texto estabelece uma analogia entre os signos pictóricos na arte, os indícios na prática investigativa e os sinais/pistas (sintomas) na psicanálise, demonstrando a transversalidade do paradigma indiciário na análise de diferentes tipos de signos.